10.13.2006

32 – Duas doses de jarros à portuguesa.

A paz quebrou-se. Singelas palavras, estas, que nem por um momento deixam entrever a brutalidade do facto que descrevem. A mesa 19 pegou em armas e ergue agora barricadas, por trás das quais se azafama a escorvar os fuzis, fazer provisão de chumbo e polvorinho, e aguçar o fio aos punhais das baionetas. Prepara-se uma guerra civil como nunca se viu igual, pelo menos em terras lusas, a Tomada da Bastilha recontada em língua portuguesa. Aux armes, citoyens.

Serve esta crónica para dizer os veros sucessos do escândalo que esta semana viu a luz do dia, verdadeiro watergate instalado à mesa 19, sendo que as revelações deste não provêm de nenhum garganta funda, mas sim, paradoxalmente, de um garganta estreita. Mais precisamente, de um jarro de garganta estreita. Eu explico…

Terminada que estava a refeição, bem como os seus legítimos complementos, entretínhamo-nos todos nas costumeiras actividades finais, tais como dividir a conta, manipular trocos diversos, atirar bolinhas de papel às empregadas de mesa, e procurar algum disparate novo, que se pudesse executar com as alfaias ainda disponíveis. Foi nesse espírito de curiosidade científica que o Carlos Santos, após tentar várias combinações possíveis, acabou por enfiar um copo de vinho dentro de um jarro vazio.

Movido por um natural impulso de solidariedade, o Rui Cardoso tomou de imediato o seu próprio copo, e tentou enfiá-lo no jarro vazio que tinha à sua frente. Tentou, mas sem resultado – é que o copo não entrava. Pasmo e estupefacção na mesa 19, onde a todos pareceu claro que alguma lei estava ali a ser violada, restando todavia saber se pertencia tal lei às da física, se às que protegem os direitos do consumidor. Para deslindar o imbróglio, foi a Vânia severamente convocada, com carácter de urgência.

Começou a nossa musa por confirmar os factos, atestando primeiro que um dos copos entrava sem dificuldade, o outro nem sequer com ela. Trocou depois os dois copos, manobra inteligente que lhe permitiu constatar o seguinte: o copo que entrava no primeiro jarro não passava no segundo, e o copo antes bloqueado por este jarro cabia perfeitamente no primeiro. A conclusão impunha-se, incontornável: apesar de ambos os jarros proclamarem, gravada no próprio vidro, a sua capacidade e predisposição para conterem cada um deles um litro, o facto é que os seus diâmetros eram dissemelhantes, logo, diversa a quantidade de vinho que transportavam. Estava ateado o barril de pólvora.

Pois então, nestes tempos de Europa e de normalização, de sal em pacotinhos e azeite em pequenos frascos, para que cidadão algum seja roubado da sua justa ração de condimentos; de doses servidas em travessas individuais, de forma a garantir a equitativa divisão das iguarias adquiridas; dos palitos embalados individualmente, tão individualmente que seria um escândalo caso se vissem dois no mesmo pacote; nestes tempos de rigor, em suma, andavam ali a vender-nos quantidades inexactas de vinho, como se de litros precisos, milimétricos, ou melhor, mililítricos, se tratasse? Ora digam-nos cá, o que havíamos nós de pensar disso?

O que realmente achámos disto, poderá o leitor facilmente adivinhar. É evidente, para quem nos conheça um pouco, que achámos muito bem, a tal ponto que teríamos todo o prazer, se solicitados, em patrocinar ao restaurante um conjunto de jarros desiguais, todos oscilando entre o quase litro e o litro e tal, como aqueles dois.

A verdade, se querem mesmo saber, é que ninguém naquela mesa simpatiza muito com esta Europa normativa e corporativa, protectora apenas do que lhe apetece proteger, seja ou não tal coisa relevante; que regulamenta o número de amêijoas em cada dose de carne à alentejana, e conta as gambas que se hão-de pôr sobre cada prato de arroz de polvo; que decide o tamanho que devem ter as maçãs, mas não se importa se sabem ou não a maçã; que me obriga a rasgar seis dos malfadados pacotinhos de sal para temperar decentemente a comida, e me garante que é tudo para o meu bem. Essa Europa é uma chatice, e é um perigo – no dia em que decidirem normalizar também o tamanho do cliente, lá vou eu ter de deixar de almoçar.

Os jarros não são todos iguais? Ora engole lá essa, Europa, que é assim que as coisas se fazem por cá. Os jarros são diferentes, porque também os clientes são desiguais, e é forçoso que a necessidades distintas correspondam meios diversos. Ao cliente sequioso dá a Europa o seu litro de vinho, e outro tanto ao cliente moderado. Que lhe importa, a ela, que falte a um o que ao outro sobra? Mas importa à Vânia, que terá o cuidado de servir um litro grande ao primeiro, e um litro menor ao segundo. Pagam os dois o mesmo, a troco de quantidades distintas? Não senhores, pagam o mesmo, a troco da mesma satisfação, o que é perfeitamente justo.

Mantenham-se então as barricadas, mas contra o verdadeiro inimigo. Quanto ao fenómeno dos jarros, é algo que terei sempre prazer em celebrar, numa copiosa libação. Com um jarro grande, se possível.

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