10.25.2006

35 – Os pequenos portugueses.

Foi num amplo salão acastelado, varrido pelo ar frio do Inverno, que penetrava traiçoeiramente pelas frinchas das paredes de pedra mal nivelada, que D. Afonso Henriques intimou a mãe a ir às boas, ou então ele fundava um país, e aí é que estava tudo lixado. Outros reis marcaram a nossa história, do alto dos seus tronos luxuosamente estofados. Estadistas vieram depois, deliberando gestas prodigiosas em salões apalaçados. Vingaram os descobridores sobre o tabuado dos seus navios, e noutra nau partiu esse Sebastião, que depois se esqueceu de voltar. A santa Sé, dos seus paços governava a cristandade, e a fé triunfou em magníficos mosteiros. Só de uma coisa não reza a história pátria, é de grandes cometimentos ocorridos em mesas repletas de comida, a menos que de feitos de glutonice se tratasse, mas desses não reza nunca a história.

Vem esta crónica a propósito de uma votação que presentemente decorre, intitulada “Os Grandes Portugueses”, e que tem por fim eleger o maior português de todos os tempos. Matéria pacífica, esta, que em nada despertaria o nosso comentário, se não fora o facto, bem patenteado no parágrafo anterior, de ser a mesa 19 inelegível para tal galardão. Dirão alguns que não, evocando grandes nomes da literatura que se realizaram nesse mesmo palco, gente como Pessoa, Mário de Sá Carneiro, e até Eça de Queirós. Não deixa de ser verdade, mas Pessoa só por derrota se sentava à mesa, e nunca Eça fez tal coisa, quando liderava a geração de 70. Só uma década mais tarde se juntou restaurativamente aos Vencidos da Vida, ao lado de outros nomes derrotados, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins, gente que reconhecera já a incapacidade da sua famosa geração para mudar o país. Podem ter sido grandes portugueses, não o foram, decerto, em torno da mesa. Quanto ao Mário, e os seus absintos, estamos conversados.

Também na mesa 19 me custa vislumbrar um vencedor para tal concurso, isto sem desprimor para qualquer dos convivas. A verdade é que se torna difícil equiparar um dito humorístico, mesmo epigramático, com o lapidar “Ou sais pela porta, ou pela janela”, que celebrizou os insurrectos de 1640, ou as opiniões avulsas sobre o que está mal no actual sistema, com o corte a direito que foi a expulsão dos Jesuítas. Mesmo a heróica actuação da Vânia y suas muchachas, que contra toda a esperança vão derramando comida sobre a mesa 19, empalidece no confronto com essa genial padeira, que em Aljubarrota venceu lançando pão sobre o inimigo. Haveremos, então, de concluir que de nada vale o nosso grupo, e que estão os pátrios destinos bem entregues a mãos alheias? Julgo que não.

Um projecto em grande escala, como, por exemplo, um país, parece-se bastante com um míssil teleguiado. Carece de impulso inicial para se lançar em voo, bem como de impulsos fortuitos, para corrigir a sua trajectória. Na maior parte do tempo, no entanto, o que conta é o motor que, discreto e eficaz, vai impulsionando o míssil na direcção que lhe foi estabelecida. Assim foi Portugal fundado e moldado por grandes portugueses, mas jamais chegaria a existir se não fossem os pequenos portugueses, todos eles.

Todos? Isto perguntava César, nas aventuras dos gauleses, e também aqui temos de responder, Não. É aqui que umas tertúlias se distinguem de outras, é aqui que a mesa 19 marca a sua diferença em relação às restantes mesas. É que a nossa tertúlia, a mesa 19, calha não ser constituída por uma cambada de patetas. E, perguntarão, basta isso? Pois basta! Hoje em dia, é quanto basta.

Seria interessante organizar a votação dos melhores pequenos portugueses de todos os tempos. O resultado, receio bem, excederia largas centenas de milhões, englobando medievais homens de mão, camponeses de todos os tempos, bem como cidadãos mais modernos. Excluídos seriam aqueles nobres do século XII que em má hora se bandearam com os mouros, os senhores feudais que não contribuíram para o crescimento do reino, os falso republicanos que não queriam derrubar a monarquia, os pretensos monárquicos que vivem à custa da república, todos os que votaram no Salgado Zenha para presidente, e os fãs do Manuel Luís Goucha.

Sobrava ainda bastante gente, pessoas com espírito e vontade própria, pessoas com ideias e objectivos, pessoas, digamos, como as que se sentam na mesa 19. É para essas pessoas, é sobretudo para essa histórica mesa, que eu reclamo o galardão de melhores pequenos portugueses. E deixem lá os grandes, que mais não fizeram, afinal, do que cumprir a sua inevitabilidade histórica. A história, de resto, já os recompensou largamente. Agora é a nossa vez.

1 comentário:

ana disse...

Um pequeno reparo: a padeira de Aljubarrota distribiui pazadas spbre o inimigo. Quem distribuiu pão foi esta senhora, noutro filme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Castelo_de_Mon%C3%A7%C3%A3o#A_lenda_de_Deuladeu_Martins