10.10.2006

30 – Patanada é igual a 19.

Concordo que isto parece ser, a uma primeira vista, um teste para determinar se alguém ainda lê estas crónicas, ou se vão pura e simplesmente acompanhando o número em que isto vai, a fim de parecerem informados. A lógica seria a seguinte, ninguém que ache normal este título pode tê-lo efectivamente lido. A razão, todavia, é muito mais simples: eu não quis criar confusões desnecessárias, falando antecipadamente em dobradiscas.

Vem tudo isto a propósito do almoço de amanhã, sendo este amanhã um dia qualquer no passado, quando esta crónica vir a luz do dia, mas que é ainda futuro, enquanto escrevo. Para esse futuro iminente, estão prometidos à mesa 19 dois pratos da nossa preferência, dobrada com feijão branco, e pataniscas de bacalhau. O dilema não me toca pessoalmente, sendo, como sou, um dos raros comensais a não apreciar dobrada, mas prevejo severos danos mentais em muitos outros, com probabilidade de vários circuitos queimados, o que levará a copiosas encomendas de patanada e dobradiscas, num meltdown final da razão.

Ah, faz o leitor, com um sorriso pateta de semi-entendimento, isso explica aquelas palavras, pois, estou a ver, patanada, e tudo isso, não é? Só não percebi uma coisa, porque é que é igual a 19? Não percebe o leitor, nem há-de perceber mais ninguém, a menos que eu lhe explique, coisa que estou mesmo a ver que vou ter de fazer, senão ninguém vai entender patavinas disto tudo. Na verdade, tem tudo a ver com algo que foi dito hoje, sendo este hoje a véspera do tal amanhã, logo, situando-se igualmente no passado. Mas eu esclareço…

Em dada altura do almoço, as conversas que cruzavam a mesa semelhavam preocupantemente aquele caos babélico profetizado um dia pelo Zé Eduardo, observando-se locuções tipicamente assírias e fenícias a esgrimirem-se com verbalizações suspeitosamente apócrifas de hieróglifos e escrita cuneiforme. Foi nesse ponto de crise que o Carlos Santos sugeriu, num dialecto da antiga Atlântida que só eu entendi, que passássemos todos a falar por intermédio da matemática, sobretudo na altura de encomendar o almoço. A ideia agradou-me, e eu acarinhei-a, brinquei um pouco com ela, e acabei por ser detido para interrogatório, e indiciado por pedofilia – era, claramente, uma ideia muito jovem.

Mas não foi isso que me fez desistir dela, que eu, quando uma ideia me agrada, sou mais tenaz do que alguns antigos apresentadores de concursos televisivos. Creio que a matemática tem vastas aplicações à nossa mesa 19. Só para dar um exemplo, é lógico admitir que num universo infinito, como, por exemplo, este em que vivemos, exista uma quantidade infinita de brandy Croft. Qualquer quantidade finita da mesma substância, digamos três cálices, dividida pelo infinito total, resulta em zero. Logo, fica desde já demonstrado que estamos a pagar demais pelos digestivos!

Os exemplos, de resto, primam pela abundância. Sabendo que a Vânia é o centro daquele restaurante, podemos designá-la por C=(c1,c2). Tomando agora o cliente X=(x1,x2), é evidente que temos (x1-c1)2+(x2-c2)2=R2, onde R é a distância média entre a Vânia e as garrafas de cheirinhos, sendo estas tomadas, neste contexto, como a projecção ortonormada dos comensais. Tomando agora a derivada da expressão precedente, e resolvendo em ordem a X, obtém-se facilmente o preço da meia dose de dobrada, o que sobejamente evidencia a simetria do nosso modelo. Observe-se, a título de curiosidade, que poderíamos ainda multiplicar o quociente das duas equações por uma matriz quadrada, cujo determinante fosse um múltiplo primo de Pí. O sistema resultante permitiria traduzir, com bastante simplicidade, toda a ementa para um dos primeiros dialectos sumérios, embora o preço passasse a constar em algarismos romanos.

Sobra-nos então o desafio, como encomendar a nossa refeição em termos matemáticos? Os restaurantes chineses endereçam o problema de uma forma simples, numerando cada prato de forma unívoca, o que reduz qualquer refeição a uma mera soma de parcelas regulares. Trata-se, sem dúvida, de uma solução elegante, mas há que ter em conta uma diferença básica, é que todos os ingredientes usados na culinária oriental admitem primitivação parcial, conformando-se as resultantes com a álgebra booleana convencional. A aplicação de um tal sistema ao bacalhau à minhota iria obviamente igualar uma jardineira a umas favas, com grave perda de expoente para ambas.

Só vejo, com efeito, uma solução para o problema. Consiste esta no seguinte: cada conviva começa por estabelecer uma hierarquia dos pratos disponíveis, atribuindo-lhes valores tanto mais altos, quanto menos o prato lhe agradar. Assim, por exemplo, o Rui Cardoso daria zero a uma dobrada, e sete ou oito a um bacalhau com natas. Em seguida, todos comunicariam à Vânia a nota do prato pretendido. Isto feito, ela ficaria de posse de um sistema de N equações a N incógnitas, sendo N o número de elementos presentes à mesa 19. A correcta resolução do sistema, que não deveria levar mais de 45 minutos, permitiria determinar os pratos a servir, com uma margem de erro que, em princípio, não deveria exceder três ou quatro encomendas erradas.

Outra possibilidade, claro, seria cada um de nós dizer aquilo que pretende. Far-se-ia, para esse efeito, uso do nome do prato, como código distintivo. Assim, por exemplo, um de nós pediria umas “salsichas com couve lombarda”, referindo-se às salsichas com couve lombarda. O sistema é sem dúvida eficaz, pode ser dominado através de uma relativamente curta aprendizagem, e reduz as possibilidades de erro, mas, caramba, qual é a subtileza disso?

Pessoalmente, aprecio muito mais uma outra solução. Basicamente, tomam-se dois pratos relacionados, podendo-se forçar essa relação, se tal for necessário, e acha-se o limite de um deles, quando tende para o outro. O valor obtido indicará, após arredondamento à unidade, qual a mesa onde o prato deve ser servido. Fica portanto óbvio, neste momento, o nosso conceito inicial:

Patanada = Lim (Patanisca --> Dobrada) = 19
Dobradisca = Lim (Dobrada --> Patanisca) = 19, sendo este um 19 distinto do anterior, como é evidente.

Ou algo do género. O importante, aqui, é não entornar a travessa, ou chegaremos a uma indeterminação. Independentemente disso, os números imaginários dão sempre bons aperitivos, quando tomados como sub-espaços vectoriais de si próprios, e depois fritos ligeiramente, sem deixar queimar.

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