10.27.2006

36 – E, finalmente, a sobremesa.

Hoje tivemos um convidado na mesa 19. O caso é raro, e de feliz nota, pois a nossa mesa tem alguma tendência para se fechar sobre si própria, e faz-lhe bem sair mais, conviver um pouco. Veio este novo comensal pela mão do Rui Cardoso, e responde pelo nome de Jerónimo, com J, para não se confundir com aquele Gerónimo que era chefe de índios, e tinha o estranho hábito de gritar o seu próprio nome, de cada vez que caía do cavalo.

Nada há de menos bom a dizer sobre este Jerónimo, nem seria de esperar que houvesse, vindo ele com quem veio. É sabido que os amigos do Rui são amigos da mesa 19, e tão adequados a ela como ele próprio. O almoço transcorreu entre conversa amena e bem disposta, houve risos sapientes, e também juízos finos e sérios, como convém a gente ilustrada. Chegou enfim a hora em que a Vânia inquire sobre as sobremesas, e foi aí que o Jerónimo cometeu o seu erro.

Não se pode realmente censurar o rapaz pelo lapso havido, pois este teria sido normalíssimo noutro lado qualquer. Não, acontece apenas que ele não conhecia a Vânia como nós a conhecemos. Só assim se explica que lhe tenha pedido para o informar sobre as sobremesas disponíveis. Pior, num extremo de imprudência, pediu-lhe para detalhar todas as sobremesas, todas elas, compreendem? Tivesse antes consultado um de nós, e já saberia que aquilo não é pedido que se faça, não naquela casa, pelo menos.

A Vânia exultou, como é evidente. Eu não sei se já o disse aqui, mas o maior prazer daquela jovem é recitar de memória a lista das sobremesas, lista que se pareceria bastante com o inventário das existências de um grande armazém, caso fosse um pouco mais curta. Enchendo o peito de felicidade, ela lançou de pronto a sua ladainha:

Ora bem, temos mousse de chocolate, mousse de manga, mousse de limão, mousse de tremoço, gel mousse para cabelos secos e molhados, doce de natas, doce da casa, doces de três outras casas, uma das quais em estilo colonial, muito bonita, argentino, marroquino, tuaregue, bósnio, outro argentino, primo do primeiro, mas que mora nos arredores de Buenos Aires, baba de camelo, ranho de camelo, camelo ao natural e cristalizado, bolo de bolacha…

Por todo o restaurante, a vida continuava. Numa mesa afastada, diziam-se disparates sobre o campeonato nacional de futebol. Na mesa 19, cigarros eram fumados, apagados, e substituídos por outros. Dois convivas iniciaram uma partida de xadrez. E a Vânia prosseguia, infatigável:

…tarte de amêndoa, bolo de noz, bolo de vós, bolo deles, bolo de chocolate, nas variantes com e sem, sendo este último a versão de dieta, com pequenos caracóis em vez do chocolate, torta de gila, direita de gala, torcida de gola, jesuítas, beneditinos, franciscanos, testemunhas de Jeová, pudim de coco…

A torre branca deu um salto felino na direcção do bispo preto, espécie de Desmond Tutu que ali estava especado sem fazer nada. O bispo, miseravelmente surpreendido, foi juntar-se aos montes de pedras que juncavam já os dois lados do tabuleiro. Os olhos em bico do Jerónimo começavam a trair uma inegável ancestralidade oriental. Sem se apiedar, a Vânia continuava:

…pudim flan, pudim de ovos, pudim de leite, pudim de ovos com leite, pudim de ovos com bacon, pudim de dobrada, encharcada, ensopada, alagada, bola de Berlim, cubo de Estocolmo, prisma de Sevilha, cilindro de Istambul, bolo inglês, francês, italiano, naturalizado húngaro, emigrante ilegal na Alemanha, travesseiros, almofadas, lençóis e cobertores, e pão-de-ló, pão de lá e pão daqui.

O bom Jerónimo, olhos já cerrados de tão chineses, ousou a medo respirar. Teria acabado a enumeração? No tabuleiro do xadrez, o rei branco, que tinha ficado sozinho no fim do jogo, parou de roer os quadrados pretos, e prestou atenção. Mas não, eram só os doces que se tinham acabado, não o fôlego de Vânia.

Quanto a fruta, temos abacaxi, melão, laranja, limão, tomate, que também é um fruto, maçã, uva branca e preta, em cachos ou jarros, banana, para quem gosta dessas coisas, kunami, maracaté, farfalle, manga, gola, bolso de camisa, mamão, só para maiores de 18 anos, pêra abacate, pêra rocha, pêra calhau, pêra e bigode, e pêssegos em calda. Ufa…

Acabara a lista! O Jerónimo, timidamente, pediu uma mousse de chocolate, mas parece que não havia, e a Vânia garantiu que nunca falara em tal coisa. Como não, fez o indignado cliente, foi logo o primeiro artigo da lista! Pois aí tem, triunfou a Vânia, acabou-se entretanto. A gerência pede desculpa pelo facto. Peça então o que quiser, desde que não tenha nada a ver com mousse de chocolate.

Face à visível hesitação do comensal, a Vânia sugeriu um argentino. Pode ser, balbuciou Jerónimo, mas o que vem a ser isso? Vai gostar, garanto-lhe, é muito bom. Trata-se de uma taça com um pouco de leite-creme, coberto com mousse de chocolate.

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