10.17.2006

34 – O fantasma da mesa 19.

Conta-nos Almeida Garrett, nessa lindíssima obra chamada “Viagens na minha terra”, sendo aquele minha a sua, isto é, sua dele, e bem assim nossa terra, que de uma ida a Santarém se trata, mas dá-nos ele, dizíamos, logo no primeiro capítulo, esta estupenda máxima literária: há livros que não deviam ter título, e títulos que não deviam ter livro. Cita, como exemplo do segundo caso, o excelente “Poeta em anos de prosa”, título sublime, ao ponto de ser impossível produzir um livro que lhe faça justiça. O acto de escrever um livro, com efeito, implica que se tem algo para dizer, de preferência algo novo, e não há, pura e simplesmente, nada que se possa acrescentar a “Poeta em anos de prosa”, título que disse já tudo o que havia a dizer.

Passando agora a circunstância mais chã e comezinha, temos a considerar o título da presente crónica. Parafraseando certo humorista da nossa praça, o título é um bom título, e não havia necessidade de estar agora a hesitar quanto à crónica que se há-de escrever por baixo dele. Mas a caneta vacila, estaca numa desavergonhada indecisão, e não há quem a convença a escolher uma vereda, e meter pés ao caminho. Para cúmulo do impasse, arma-se ainda a descarada em carapau, daqueles de corrida, e tenta devolver o problema ao pobre escriba, sugerindo que talvez seja melhor título, “O espírito da mesa 19”. E esta, hein? Com quem havia eu de ter casado a minha prima…

Espírito, ou fantasma? Parece isto uma questão idêntica à das chamadas grátis ou à borla, e contudo não o é. As esferas de significados das duas expressões são distintas, conquanto se interpenetrem (como diria o Baptista Bastos, isto de se interpenetrarem faz-me lembrar uma outra história, mas não há tempo para a contar aqui). Por outro lado, diz o sábio povo brasileiro, a quem costumávamos chamar os nossos irmãos transatlânticos, mas já não chamamos, porque agora estão todos deste lado do Atlântico, e além disso é melhor que paremos de os chamar, ou ainda vêm mais para cá, mas dizem eles, repito, que “desgraça pouca é bobagem”. Só para lhes dar razão, deixem-me propor um terceiro título, “A alma da mesa 19”.

Alma, espírito, fantasma… todas estas palavras têm um significado comum, respeitando à porção imaterial de um ser feito de matéria. Têm todas, também, um segundo sentido, que é próprio de cada uma, e distinto das demais: alma é vigor interior, força que por isso se chama anímica; espírito é o ideal, o conjunto de noções e sentimentos comuns que norteiam um indivíduo ou um grupo; fantasma é uma ameaça, o calafrio que o crepúsculo nos traz quando as sombras dominam, o temor arrepiado do desconhecido, do perigo metafísico que impende sobre nós, o lado negro do além.

Estas considerações, necessariamente tão vagas como a natureza etérea do conceito que tentamos abranger, poderão ser melhor condensadas numa frase exemplificativa. Digamos, “Toda a alma da mesa 19 se insurgiu contra a falta de dobrada. O nosso espírito, verrinoso e cônscio dos seus direitos, meditou uma vingança digna da afronta. Talvez se fizéssemos pairar sobre o restaurante, qual sombra ominosa, o fantasma da deserção da mesa 19? Mas, não, quem é que nos acreditaria?”. Julgo que este exemplo ilustra bem o nosso ponto de vista.

Mas há ainda o outro significado, aquele que agrega os três significantes numa única interpretação, o lado espiritual de uma entidade material. O ente que assim se projecta não é por força um ser humano, nem sequer um ser vivo, isto no sentido convencional e biológico da palavra. De modo algum, pode muito bem ser uma instituição, como uma escola, uma igreja, ou uma mera tertúlia que se agrupa, digamos, em volta de uma mesa, como a 19. Nesse sentido, o fantasma da mesa 19 é uno mas também múltiplo, sendo como é o conjunto de todos os “nós” que aí se sentam, altas horas da madrugada, quando nós não estamos lá sentados.

Isto postulado, acho-me agora em sério risco de que me acusem de levar demasiadamente a sério a mesa 19. Ora, isto não é verdade, ou, se o é, não é pelo menos assim. Eu levo a sério, muito a sério, mesmo, toda e qualquer agremiação de pessoas que cultive o hábito de se reunir em torno de gostos e valores comuns, e que privilegie o costume de pensar por si própria. Creio firmemente que tais associações, e apenas elas, poderão constituir uma barreira efectiva contra a lógica corporativista que ameaça destruir a humanidade, tal como hoje a conhecemos.

Um almoço mais tardio, com regresso jovial e impenitente. Uma censura recebida com um sorriso, um paradigma de empresa deitado ao desprezo. Os poderes estabelecidos reprimem um arrepio, vagamente enregelados pela sombra que inesperadamente macula o sol doirado da nova ordem. Mas não, senhores, não é nada de grave. Grave, para vós, é somente o que é material e tangível, e de nada disso se trata. Não é ainda a revolta armada, é apenas o fantasma da mesa 19.

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