10.11.2006

31 – A espuma da mesa 19.

A manhã começou com o costumeiro nascer do sol, mas não se deixou ficar por aí, e seguiu em frente com a sua vida. Passava agora um pouco das onze horas, e o tal nascimento já ia bem longe, dissipada que estava a excitação da efeméride, e os cartões congratulatórios à feliz mamã, e ao baboso papá. O sol era agora um rapagão espigado, bem longe da idade dos cueiros e dos biberões, e começava a aproximar-se a hora do almoço.

O restaurante abriu as portas, num bocejo mal disfarçado, e os empregados aproveitaram a deixa e entraram por ali adentro, como se fosse para isso que a porta servia. Vítor contemplou a sala vazia e deserta, e preparou-se para a sua postura quotidiana. Principiaria, como já era hábito, pela mesa 19, ex-libris do estabelecimento. Tomou o seu lugar sob o ar condicionado, agachou-se, e, com um bater de asas e um cacarejar lamentoso, começou a pôr as mesas.

Lá dentro, a cozinheira não parava, excepto quando a tal era forçada pelo casual embate com alguma peça de mobiliário, entrando nesses casos em acção o mecanismo de bate-e-volta, que a levava a rodar sobre si própria, partindo logo em outra direcção. A maior parte dos preparativos ficara feita na véspera, ideia inspirada pelo prefixo “pré”, que encabeça a palavra “preparativos”, mas havia sempre ajustes de última hora a fazer. As coxas de galinha podiam ser um problema, mas estas, felizmente, eram da variedade de coxa que traz as suas próprias muletas e cadeiras de rodas. As salsichas frescas estavam firmemente enroladas no lombardo, embora o lombardo insistisse que aquilo não podia ser, pois tinha mulher e filhos, lá na Lombardia. A dobrada, contudo, vinha outra vez mal vincada, e foi necessário estender tudo, e voltar a dobrar.

Tiveram ainda de riscar apressadamente da lista os lombinhos de novilho aux champignons, quando descobriram que o merceeiro tinha voltado a mandar simples cogumelos, e o suposto bacalhau da Noruega foi uma decepção: não sabia uma só palavra de norueguês, e cumprimentou-os numa espécie de francês mascavado, com vincado sotaque palestiniano. Deitaram aquilo tudo fora, não fosse explodir, e substituíram-no, na ementa, por uma omoleta aux champignons. Usariam os tais cogumelos, paciência, talvez ninguém desse por nada.

Tudo a postos, meio-dia a soar, a Vânia deu o tiro de partida, atingindo mortalmente o primeiro cliente, que vinha justamente a entrar. Azar, pensaram todos, ninguém o mandara fazer uma falsa partida, mas a verdade é que sempre era menos um para pagar a conta, e coisas destas nunca são boas para o negócio. O cadáver removeu-se a si próprio, apressadinho como sempre, e os restantes clientes começaram a afluir, desta vez vivos.

Os comensais da mesa 19 foram os primeiros a chegar, isto se descontarmos várias pessoas que pouco interessam, por não serem da mesa 19. Um a um, cruzaram a soleira da porta, levando algum tempo neste processo, visto que era necessário voltar a descruzá-la após cada entrada, ou mais ninguém poderia passar. Vinham cinco ao todo, e a mesa posta pelo Vítor apenas acomodava quatro, mas não quiseram exigir-lhe novos esforços, e contentaram-se em roubar os lugares suplementares à mesa do lado. Esta ainda deu parte do roubo, na esquadra local, mas parece que lhe disseram que tinham muita pena, mas nada podiam fazer. Veio a descobrir-se depois que era mentira, eles não tinham pena nenhuma.

Daí em diante, os pedidos sucederam-se, três dobradas, meia de costeletas, um jarro de tinto, não, dois, uma esmolinha pelo Santo António, o picante, a carta e documentos do veículo, a mão da sua filha em casamento, outro jarro de vinho, que estes parece que vinham rotos, a conta. A Vânia não tinha mãos a medir, por isso nós emprestámos-lhe as nossas, que ela mediu conscienciosamente, chegando a um comprimento total que em nada diferia da soma das partes. A dobrada, pelo seu lado, deu boa conta de si, quase se podendo dizer o mesmo do feijão.

Já na hora dos aperitivos, os disparates que emanavam da mesa 19 tinham deixado a Vânia fora de si. Quando voltou a reentrar em si, constatou que o seu corpo tinha aproveitado a sua ausência para envenenar toda a mesa com cicuta. Mesmo o Rui Cardoso, esse habitual abstémio, fora perfidamente enganado com um pretenso licor de dobrada, uma especialidade que ele não quis deixar de experimentar. Ao contrário daquele prestável cliente inicial, os cadáveres recusaram-se firmemente a sair pelo seu próprio pé. Sobre a mesa 19, pairava uma certa flatulência post-mortem.

A tarde declinou já, e o sol morre no ocaso. Morre chateado que nem um peru, após constatar que se voltou a deixar enganar pelo mesmo velho truque, ranhoso e com barbas, com que todos os dias o matam. Serve-lhe de consolo a ideia de que voltará a nascer no dia seguinte, vagindo inocentemente o romper da aurora. Também a mesa 19 renascerá. Infelizmente, apenas para constatar que já não há dobrada.

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