11.03.2006

40 – O Homem-Santola.

Imagine o amável leitor que toma nas suas mãos uma vulgar pedra da calçada, e a lança contra uma multidão escolhida ao acaso. Com toda a probabilidade, a pedra irá acertar em alguém que nunca ouviu falar em Edward Wood, nem está sequer muito preocupado com o assunto, visto toda a sua atenção, nesse momento, se concentrar na tarefa de lhe partir o focinho, para aprender a não apedrejar pessoas que nunca lhe fizeram mal algum.

Se o segundo facto é facilmente compreensível, mais difícil é entender o primeiro, o desconhecimento generalizado desse brilhante cineasta que foi Edward D. Wood. Sei que esta palavra, brilhante, poderá causar alguns engasgos a qualquer pessoa minimamente familiarizada com a reputação de Ed Wood, geralmente considerado o pior realizador que alguma vez pisou os estúdios de Hollywood. Eu, todavia, insisto no adjectivo, por razões que não tardarei a explicar.

Wood dirigiu diversas histórias de ficção científica, todas de baixo orçamento, todas com maus guiões, e indescritivelmente mal feitas, todas elas. Famoso, entre todas, é o delicioso “Plan 9 from Outer Space”, de que falaremos mais à frente.

É claro que a falta de meios ajuda a explicar por que razão o disco voador se parece com uma tampa de panela, baloiçando, ao sabor das correntes de ar, na ponta de uma guita que se deixa entrever. Não basta, contudo, para justificar que o piloto do avião, ao avistar a citada tampa de panela, descreva pela rádio que está a ver um objecto grande e alongado, da forma de um charuto. Ou que o funeral decorra durante a noite, enquanto fora do cemitério é dia claro. Ou que as diversas cenas de uma perseguição alternem entre dia e noite, ao sabor do que conveio filmar. O argumento financeiro não basta, não é preciso dinheiro para se evitarem disparates destes, caramba.

Os títulos, só por si, constituem uma anedota à parte. De entre uma série de obras, todas com nomes imbuídos de uma naiveté espantosamente imberbe, destaca-se o mencionado “Plan 9 from Outer Space”. Terá sido com base neste, considerado o pior filme de sempre, que Stanley Sheff concebeu o seu “Lobster Man from Mars”, uma comédia em torno de um filme péssimo, tornado um inesperado sucesso de bilheteira.

Foi este último, aliás, que trouxe Wood às conversas da mesa 19, aqui há algum tempo. Começou tudo com a chegada do Paulo Sousa, visando uma dobrada tardia, já em tempo de digestivos. Enquanto ele comia e nós bebíamos, alguém reparou, e comentou em voz alta, que o Paulo parecia uma santola. Olhei então para ele, e não me repugnou admitir que ele parece de facto uma santola, da mesma forma que eu não pareço um esbelto galgo. Foi esse o início da carreira do Paulo, em direcção ao panteão de fama das santolas.

Foi por isso que me lembrei de Ed Wood. Ele foi o percursor de “O Homem Lagosta de Marte”, nós poderíamos talvez dirigir “O Homem Santola de Bostis Merdix 7”. E faríamos esse filme da única maneira que considero aceitável: mal, muito mal, mesmo. Não sei se conseguiríamos suplantar Wood nesse esforço, mas por certo que o tentaríamos. Porque, compreendem, eu estou seguro de que todas as falhas nos filmes de Edward Wood são intencionais, e de que ele sempre trabalhou, de forma brilhante, para produzir aquilo que realmente pretendia: os únicos filmes honestos da história de Hollywood.

É já quase banal chamar ao cinema A Grande Ilusão. O celulóide foi inventado para ser um repositório das mentiras cozinhadas pela indústria do espectáculo. O supra-sumo dessa arte consiste em convencer o espectador de que vê o que não está lá para ser visto, nem nunca esteve, ou virá a estar. Filmes como “Alien”, ou “Jurassic Park”, vivem de uma cornucópia de efeitos especiais, meros truques de circo pour epatter le burgeois. Mas o Homem Lagosta de Marte é real, intensamente real. Ali vemos, não a perfeição de um inexistente Alien, mas a sólida verdade de um esforçado actor, grotescamente mascarado com pedaços de borracha, a imitar um crustáceo. Ora digam-me cá, quantas vezes não há, em que nós próprios nos sentimos exactamente assim, como se passássemos pela vida mascarados de lagosta? Em contrapartida, quem é que, na vida real, viu já um Alien, verdadeiro e convincente?

Seria um desastre, se alguém tentasse produzir um making of de qualquer filme de Ed Wood. A essência desses documentários é explicar, a um público embasbacado, como se fez este ou aquele efeito. Isso é desnecessário nestes filmes, pois está lá tudo, o efeito e a forma como foi conseguido, tudo na mesma cena. É como se víssemos o filme dos bastidores, e não da plateia. Wood, ao contrário dos outros cineastas, acredita que a magia do cinema está apenas nisto, em permitir a sua própria desconstrução, a partir de dentro, do próprio filme, e não de uma crítica exterior ao mesmo.

E a nossa mesa 19, como se vê ela metida nestes assados? Poderei eu ligar, nas sólidas malhas de um raciocínio escorreito, esta cinéfila crónica? Pois bem, posso. Posso, mas não quero. Sinto-me um pouco professoral, hoje, por isso vou deixar este ponto em aberto, como trabalho para casa.

Nem sequer é difícil. Para além da razão óbvia, que é explicar por que razão começámos a vestir o Paulo de santola, há outras coisas. Basta que se pense em certas posturas profissionais mais honestas, deste ou daquele, que acabaram por resultar em maus filmes, figurativamente falando. Imagine-se que Óscares não teria valido uma postura diversa. Ou então esqueçam isso, e considerem apenas quantas vezes já pensaram, Isto está tão mal feito, que só pode ser de propósito!

Pois bem, quem é que disse que não é?

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