11.14.2006

42 - Delenda Cartago!

É quase uma constante da vida, a gente passa meses a ver passar mais do mesmo, e quando tira quatro míseros diazitos de férias, tudo acontece. O que realmente aconteceu, neste caso, foi uma coisa trivial e portentosa, simples na sua imensa complexidade. Trata-se de nada menos do que isto, o advento da censura à mesa 19.

Serve esta crónica para falar da ascensão e queda do império da mesa 19. Bem, não tanto da ascensão, que tem sido amplamente descrita nestas páginas, mas sobretudo da queda, novel ocorrência, a fugir com o gordo rabo à seringa da nossa vivência quotidiana. Nós, que fomos a inveja de Salomão, encarnações materiais do cântico dos cânticos, mais poderosos do que Aníbal, mais sábios que Buda, somos de súbito alvo de censuras baixas e comezinhas. Nós, que destronámos imperadores, somos acusados – pasme-se – de atirar bolinhas de papel para cima do aparelho de ar condicionado! Ora digam-me, dá para acreditar nisto?

A baixa vileza da acusação constitui um insulto que nada, nem sequer o facto de ser inteiramente verdadeira, pode apagar. Acaso Nero se preocupou com a justiça, sequer com a verdade, quando fez de Roma a sua pira de glória? Tiveram outros Césares mais contemplações, quando se tratou de fazer frente ao fenício hostil? Nada, Catão, o censor do império, ergueu a fronte altiva, e em clara voz de comando ordenou a destruição de Cartago, capital inimiga. Delenda Cartago, determinou, e serenamente aguardou a resposta inevitável, Cartago delenda est.

A mesa 19 é um ideal, uma abstracção, uma nuvem sonhada por um banquete de filósofos. É por demais claro que abstracções e nuvens não atiram papelinhos para cima dos aparelhos de ar condicionado, pelo que a má acção não pode ter sido praticada senão pelos seus sacerdotes, as nossas pessoas carnais (aqui entre nós, foi o Carlos, mas adiante). Mas, e aí é que bate o ponto, todas as religiões declaram que os seus sacerdotes são sagrados, tão imunes à profanação como o próprio Deus que servem, e nós, que oficiamos o culto da mesa 19, não deveríamos ser excepção.

Mas as coisas são como são, e nós estamos debaixo de fogo, vítimas dos golpes das potências profanas que visam a destruição do nosso império. Os seus golpes são baixos, querendo levar a derisão aos nossos rituais mais sagrados, como os cânticos comuns – tão vilipendiados no passado – ou o sagrado rito das bolinhas de papel. Contra eles, só nos podemos deixar esmagar, ou então erguer bem alto a cabeça, e gritar, Delenda Cartago!

Que Cartago é essa, que urge destruir? Na infeliz ausência material da antiga capital fenícia, há que identificar outro alvo. Dentro do espírito científico, rigoroso e exacto destas crónicas, decidimos, após cuidadosa deliberação, tomar como referência exactamente aquilo que, no momento, me passasse pela cabeça. Desse ponto de vista, quem são os nossos cartagineses?

Pois bem, eles são uma multidão. Mais precisamente, são todas aquelas pessoas que não voam, todos os que sobrevivem em vez de viver, que ponderam quando deveriam rir, que riem quando poderiam exultar, que não sabem o que é sonhar, nem compreendem a ímpar beatitude de uma bolinha de papel, lançada com oportunidade sobre o topo de um ar condicionado. São os que concordam, sorumbáticos, quando alguém diz que a vida é um assunto sério, e, de tanto o dizerem, vão começando a acreditar que é mesmo verdade. É contra eles que eu lanço as minhas centúrias, é aos seus ouvidos que brado, Delenda Cartago!

Mas está escrito que Cartago não será destruída, e Roma terá de cair. Assim seja, cumpra-se então a inevitabilidade histórica, mas consintam-me ao menos um prazer, que nos seja permitido cair em chamas, como a Roma imperial de Nero. Nem que sejam apenas as chamas do aparelho de ar condicionado, finalmente incinerado por todas as bolinhas de papel que sobre si acumula. Que diabo, não custa assim tanto comprarem outro. Outro restaurante, quero eu dizer…

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