11.16.2006

44 – Memórias da mesa 19.

Disse hoje um ilustre comensal, por outras palavras que não estas, mas sensivelmente com o mesmo sentido, “Quando não há nada de novo para escrever, escrevem-se memórias”. Eu resolvi pegar-lhe na palavra, não porque não haja já nada de novo para escrever – há sempre –, mas porque, com franqueza, tive preguiça de pensar noutro tema.

Serve esta crónica, como o título sobejamente indica, para falar das memórias da mesa 19. O título, honra lhe seja feita, tem o seu quê de pretensioso, e estive mesmo para o fazer pior, qualquer coisa como, “Les memoirs de la table diz-neuf”. Ou então, puxando ao chique de uma série da BBC, “Reviver o passado na mesa 19”. Sofreei a tempo o impulso arrebicado, Deo gratia, e ative-me às lusitanas “Memórias”, título ilustrativo quantum satis.

Ora bem, achado que está o título, não há senão que lhe escrever por baixo uma crónica, se possível de teor condizente com o que as letras gordas anunciam. E é aqui que a proverbial porca torce o seu metafórico rabo. Pois, vejamos bem, que sei eu dessas memórias, desses tempos de antanho, em que a mesa 19 soltava os primeiros vagidos infantis, entre os panos que então lhe serviam de cueiros, e que mais tarde a viriam a atoalhar? Em já longínqua crónica admiti e confessei, sem rebuço, mais não ser que o mais recente dos arrivistas, naquela histórica e vetusta mesa. Toda uma legenda por trás de mim se desenrola, e dessa legenda eu quase tudo desconheço. O que fazer, então?

A solução honesta, diriam alguns, seria desistir, de uma vez e por todas, de escrever tal crónica. Pois sim, tudo isso é muito bonito, mas digam-me cá, por que raio é que eu faria semelhante coisa? Bem sei que o argumento, tal como é apresentado, parece convincente e persuasivo, mas o facto é que carece do menor fundamento. Desde quando é que, nesta terra, é preciso entender seja o que for sobre um assunto, para dele se poder falar à vontade?

E, de resto, não é como se eu desconhecesse por inteiro a mesa 19, muito pelo contrário. Quem, senão eu, que ao longo de mais de um ano acompanhei a pari passu as gestas e vicissitudes dessa meritória agremiação, seria mais talhado para aqui falar dela, seja na sua vertente passada, como presente ou futura? De resto, e seja como for, a integral verdade dos factos não foi nunca um dos principais ingredientes destas crónicas. Seria até caso de, plagiando o bom do Eça, adoptar um novo lema: “Sobre o anoréctico esqueleto da verdade, o pesado cobertor da mais desenfreada fantasia”.

Vamos então às tais memórias, e vamos a elas como Santiago foi aos mouros. Começaremos por dizer que, pese embora o nosso orgulho e amor-próprio, já antes de nós se serviam almoços na mesa 19. Foram tempos bastardos, esses, de que outras crónicas se farão trombeta, que não estas. Naquelas nobres cadeiras, tronos que por modéstia se disfarçam com a dura simplicidade do pinho, anónimos e pouco meritórios cus tomaram já assento, ouvindo com bochechuda paciência os seus donos, que gastavam o tempo do repasto em discutir merdas sem interesse.

Já por lá navegavam, todavia, os pais fundadores do nosso grupo. Se assestarmos o telescópio da história à memorável sala, claramente distinguiremos esse Carlos, por cognome O ancião, que, do convés de mesas estrategicamente limítrofes, lança olhares, prenhes de conquistadora cobiça, sobre a mesa que viria a ser o nosso território.

Veio depois a fundação, épicas gestas onde pelejaram e se distinguiram vultos maiores da nossa história, como seja o caso do Paulo, o homem-santola. Até uma mulher por lá andou, acho que já aqui se falou nisso, e depois vieram os arrivistas. E, com eles, deu-se o advento das crónicas, e a mesa ganhou memória escrita.

As crónicas, em si, não têm qualquer importância. Vale tanto escrever uma delas, como dizer que D. Afonso Henriques fundou Portugal. Não é por o dizermos que ele o fundou, e o valor da coisa está no acto, não nos papéis que mais tarde disseram o evento. Mas não é garantido que Portugal ficasse de facto fundado, se não viesse depois alguém escrevê-lo. O valor das crónicas, se algum valor têm, é apenas esse, confirmar aquilo que, de qualquer modo, já antes delas existia.

E então, quanto às memórias? Batatas, que se lixem as memórias, que a vida da mesa 19 é para a frente, e não para trás. O passado já não existe, o presente é nosso, e, quanto ao futuro, cá estaremos para dar conta dele, em oportuna e atempada crónica.

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