11.29.2006

50 – Lepidópteros e Paquidermes.

Há, na vida de toda a gente, um ponto em que se torna necessário dizer Basta. Eu, confesso-o, acabo de atingir o meu. Não é só pela razão de andar a acarinhar uma gripe que vem dando cabo de mim, como se alguém me tivesse dado recentemente um enxerto de porrada, e enfiado depois uma lixeira municipal de tamanho médio pelo meu nariz acima. Tudo isso, incluindo os arrepios, as tonturas e as náuseas, são sintomas perfeitamente suportáveis. Não, o que deu cabo de mim foi a rara intensidade destes últimos dias, a merecerem uma crónica que não será publicada, e outra, mais recente, que não será jamais escrita. Chega, estou esgotado, e vou parar de me meter em sarilhos.

Serve esta crónica para não falar de coisa nenhuma, ou, pelo menos, para falar destas o mínimo possível. Não sei, não estou bem seguro, até que ponto é que se pode encher uma página sem dizer nada, mas, se nos podemos fiar nos exemplos dos nossos políticos, não há-de ser muito difícil. É claro que, para começar, é necessário um tema, o qual pode ser, por exemplo, o estudo anatómico e comparativo dos elefantes e das borboletas. Julgo que se trata de um bom assunto, e um que tem sido lamentavelmente negligenciado, ao longo dos tempos.

Elefantes e borboletas: o que podemos então inferir sobre essas duas criaturas de Deus? Bom, temos, para começar, a sua gritante semelhança. É por demais sabido, em primeiro lugar, que ambos voam muito bem, com a possível excepção do elefante. Dispõem os dois de trombas, que utilizam para colher o pólen, ou então cocos, e têm em comum a cor cinzenta, menos, geralmente, a borboleta. De resto, são quadrúpedes, ou não, consoante a espécie, e duram apenas dois dias, indo depois morrer num cemitério secreto, no coração de África. Dos dentes dos elefantes faz-se o marfim, e, dos das borboletas, teclados de piano.

Em toda a vida dos elefantes, a parte mais bonita são as migrações. Nada há de mais belo do que contemplar, no Outono, os majestosos cardumes de paquidermes, voando em direcção ao Sul. Mesmo sem o desejarmos, os olhos enchem-se de lágrimas. Depois, bebemos outro brandy, e voltamos a contemplar a imponente matilha. O raio dos olhos voltam a encher-se de água, bebemos outro brandy, e por aí adiante. No dia seguinte, ainda ressacados, pegamos na espingarda, e vamos caçar elefantes.

Mas há diferenças, malgré tout, entre as duas espécies. Pessoas que estiveram já debaixo de um elefante, e depois debaixo de uma borboleta, confessam preferir de longe a segunda experiência. Segundo elas, as borboletas têm demasiada tendência para se meter onde não são chamadas, mas, em compensação, pesam muito menos no estômago.

A diferença fundamental, como é evidente, está no colorido. Toda a gente conhece aquelas belas asas, rendilhadas de todas as cores do arco-íris, matizadas de sublimes padrões policromos, que tão bem se distinguem da insípida monotonia das asas brancas das borboletas. Mas não devemos ser demasiadamente críticos, não é assim tão difícil imaginar um mundo em que os lepidópteros fossem coloridos, e todos os elefantes fossem cinzentos.

Outro factor importante, quando se estuda uma espécie, são os seus dejectos. Também aqui há uma significativa diferença, os dejectos da borboleta atacam a pintura dos carros, e os do elefante atacam o carro inteiro. Os dois sofrem ainda distinção, quando depositados no meio da via pública, mas isso é um assunto diferente, e matéria para nova crónica.

Há por último a considerar o valor alimentar de cada espécie, e não há, nesse particular, campo para dúvidas. Embora a borboleta forneça alimentação mais abundante, a carne do elefante é muito mais delicada. Alguns gastrónomos têm comparado a asa da borboleta com a ponta da orelha do elefante, mas a questão é ainda duvidosa. Quanto ao órgão sexual do paquiderme, a pata, quem a prova não quer outra coisa. De resto, também não vai precisar.

Fica assim demonstrado que, de todos os animais que esvoaçam mimosamente de flor em flor, o elefante é talvez o mais terno, e sem dúvida o mais útil. Numa próxima edição, discutiremos o Morcego e a Ténia.

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