11.17.2006

45 – Sobre blogs, jornais, e trinta-e-um de boca.

Nesses arredados tempos da minha longínqua juventude, em que eu, na ânsia infrene e desmedida de me fazer passar por uma pessoa moderadamente culta, contribuí com o meu frequente óbolo para a caixa do bar de uma destacada faculdade, onde cheguei mesmo a frequentar uma ou outra aula, tínhamos também umas crónicas.

O molde era em tudo semelhante ao destas páginas. Um ou dois escribas, no seu denodado esforço para encontrarem matéria extra-curricular com que matar o tempo, começaram a manuscrever uma história corrida, cujo enredo, se ainda recordo, girava insistentemente em torno do delicioso corpo de uma nossa condiscípula, e das suas improváveis aventuras sexuais com magotes de marinheiros. As folhas caligrafadas iam surgindo rotineiramente, e circulavam pelo bar, entre uma cerveja e a balda a mais uma aula.

A aquisição de um grau do ensino superior é uma nobre tarefa, que em devida hora julguei excessiva para sangue tão plebeu como o que ainda hoje me corre nas veias. Deixei, pois, o empreendimento a cargo de mais brasonadas pessoas, e lancei-me na vida profissional, inculto como antes. Nunca, até começar a escrever estas crónicas, me voltei a lembrar daquelas.

Quando a recordação por fim me acudiu, foi com aquela condescendência superior que em regra votamos às coisas do passado, e aos seus rituais obsoletos. Lembro-me de pensar, Vejam só, textos manuscritos, e circulados em folha única, como se Gutemberg jamais tivesse vivido à face da terra, e nela inventado a imprensa. Poucos anos depois, vulgarizavam-se computadores e impressoras, mas a Internet era ainda um sonho distante.

Mesmo depois de se concretizar o sonho, e de toda a gente navegar livremente nas auto-estradas da informação, não estava ainda ao alcance de qualquer um a possibilidade de publicar informações on-line. Só muito mais tarde se viria a dar essa democratização, com o advento dos blogs.

De forma que as crónicas da mesa 19, a anos-luz dos incipientes papiros da faculdade, começaram a ser publicadas num blog. Tudo correu bem por uns tempos, mas logo descobri que nem todos os leitores conseguiam manter o passo. Se alguns liam a crónica assim que ela era publicada, outros só dias depois lhe votavam uma atenção de que até aí não haviam disposto. Isso fez com que, em períodos mais férteis do escriba, fossem publicadas crónicas sem que a maioria do público tivesse já lido a anterior. Ficavam assim dois textos por ler, coisa mais difícil do que ler apenas um, e a tendência era protelar, até que viesse terceiro texto dificultar ainda mais a tarefa. E, assim por diante.

A única ocasião em que todos, definitivamente, temos tempo para este género de lazer, é durante o almoço. Não está, contudo, a mesa 19 dotada de acesso à Internet, pelo menos por enquanto. Foi por isso que eu tive um dia uma ideia brilhante, imprimir a crónica recém-escrita, e fazê-la circular pela mesa. O costume pegou, e, hoje em dia, ninguém mais acede ao blog. As crónicas são servidas, em exemplar único, como antepasto ou sobremesa.

Completa-se assim um ciclo. Um processo que, no seu início, se ria, jactante no alto da sua tecnologia superior, dos medievais ritos do pergaminho circulado de mão em mão, vem justamente tombar nos mesmos vícios, só se distinguindo do antigamente por ser impresso. Olha que grande coisa, impresso, isso já há quinhentos anos se fazia! Em tudo o resto, plus ça change, plus c’est la même chose. O que mudou, então?

Não é caso inédito, este fechar de um ciclo, mas é, em todo o caso, merecedor da nossa atenção. Veja-se, por exemplo, quanta gente migra da província para a grande urbe, monta por lá a sua vida citadina, e não descansa depois enquanto não encontra uma aldeia remota, seja sua ou alheia, onde passar as férias que consegue ter. Ou então, basta ver como evoluiu o requinte na arte restaurativa, o proliferar de restaurantes limpos e assepticamente modernos, para hoje em dia toda a gente procurar uma tasca bem típica, das de antigamente, que é onde se come bem.

Cada era tem a sua própria maldição, que vem, via de regra, matreiramente disfarçada de benesse. O primeiro milénio assistiu aos horrores das cruzadas, guerra estúpida onde tanta gente válida deixou a vida, e o segundo milénio encerra sob a égide do computador, da Internet, das comunicações globais e instantâneas. Tudo se clica, tudo se tecla, nada realmente se faz.

A juventude vai sofrer com isto. Não há SMS que substitua um olhar, ou MSN que faça as vezes de um beijo. Talvez os nossos filhos, já hoje, comentem em voz temerosa, Sabes que os meus pais, na primeira vez que se falaram, já se conheciam? Pois é, não sei onde isto vai parar. As crónicas, pelo sim, pelo não, vão continuar a circular em papel. Nem que seja por amor dos velhos tempos, aqueles que não voltam mais.

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindíssimo o que escreveste sobre o que os filhos dirão... E ainda bem que fazes circular estas crónicas em papel. Assim não se perde nenhuma e o prazer do almoço é redobrado. Um beijo grande :)