11.20.2006

46 – Vinde a mim as criancinhas.

Hoje, confesso-o abertamente, alberguei no meu coração um sentimento mesquinho. Por longos momentos, admito-o, entreguei-me sem escrúpulos à inveja. E não de pequena monta, há que dizê-lo, pois dei por mim a invejar intensamente os grandes poetas da nossa língua, os Camões, os Bocages, todos os outros. Pior ainda, não lhes invejei – ai de mim – o talento, mas tão-somente a impunidade.

Deu-se tudo isto por se ter sentado, numa mesa perto da nossa, uma jovem encantadora. Tão jovem era, e tão encantadora, que não resisti a indagar, junto da Vânia, se sabia quem era aquela sílfide, e se lhe conhecia o nome e a história, os principais feitos e sucessos. Horror e anátema, cai-me a Vânia em cima, metaforicamente, é bom de ver, e com nojo e asco me vitupera, que eu era um pervertido, pois não tinha a rapariga mais de dezanove anos, quase uma criança, portanto. Não estou bem seguro, mas julgo que me chegou a cuspir na cara.

Timorato e desorientado, encolhi-me covardemente, e logo retirei o piropo a que impensadamente dera voz, não viesse a polícia judiciária pela minha pessoa, e fosse eu acabar num desses temerosos calabouços, onde pedófilos confessos se apinham, aguardando carne jovem. Quem sabe, mesmo, se algum deles não se deixava tentar pela minha silhueta rotunda, e administrativamente me conferia cartão-jovem. Nada, o melhor é não arriscar.

Fiquei contudo a remoer, que raio têm os nossos poetas, que eu não tenho? Camões cantou desabridamente os encantos das tágides, e todos nós vimos já estátuas das ditas, ao colo do malandro do zarolho. Não têm quarenta e nove anos, pois não? Nem pouco mais ou menos, que o Luís Vaz tinha olho, ainda que fosse só um, e nenhuma das suas ninfas do Tejo estava aprazada para completar os dezanove anos antes da próxima passagem do cometa Halley. Já não falemos da cativa que o tinha cativo, e que tinha mas era idade para ser filha dele. Mas digam-me lá, espetaram com ele na choça? Qual quê, dedicaram-lhe mas foi o dia de Portugal.

Enquanto ao Bocage, estamos conversados. Há mais mulheres nos seus poemas do que peixes no mar, e a única coisa que não as vemos fazer é tomar chá. A juvenil infância é patente em muito soneto, e será que os beleguins o prenderam? Bom, por acaso prenderam mesmo, mas foi noutros tempos, quando se prendiam as pessoas apenas por coisas que elas de facto faziam, e não por aquilo que diziam, ou se dizia delas. De resto, o talento dele, nos nossos dias, desculparia muita coisa, e ainda éramos capazes de o ver candidato ao prémio Pessoa, e a aparecer na televisão em horário nobre. E eu? Eu sou um pedófilo, digno apenas de ser esborrachado, e vá-se lá perceber o que faço ainda à solta. Ah, Vânia, Vânia, que ainda hás-de ser a minha perdição.

Batatas, a miúda era gira, e tinha 19 anos, tão certo como sermos nós a mesa 19, e não a 14, por exemplo. As unhas eram vermelho-morango, a cara era fresca e bem-disposta, no traje moderna, sem ser escandalosa. Tinha 19 anos, caramba. Chamasse-lhe eu uma tágide ou uma nereide, e a coisa marchava, mas caí na asneira de lhe chamar uma miúda gira. A expressão caiu mal, porque eu não sou nem uma coisa nem outra.

É assim mesmo. Nós, os quarentões, somos proibidos até de apreciar jovens, sob pena de sermos considerados uns pervertidos. Em contrapartida, qualquer puto imberbe e boçal, género morangos “sou uma besta” com açúcar, pode a seu bel-prazer fazer à dita menina as mais inconvenientes propostas. Ainda para mais, correndo ela o risco, se cair na asneira de as aceitar, de ficar mal servida. Que digo eu, risco? É quase uma certeza, que estes putos, mesmo os que ainda não deram em maricas, primam por não distinguir o cu das calças, por mais que estas, à força de cair, vão mostrando aquele. Nós é que, para mal dos nossos pecados, nem do alto da nossa velhice podemos apreciar a juventude.

É assim que as coisas estão, os velhos metem nojo, e devem abster-se sequer de abrir a boca, excepto para falar das suas coisas de velhos. Desconfio que mesmo Jesus Cristo, se de novo viesse à terra, e se lembrasse de repetir aquela laracha do, “vinde a mim as criancinhas”, não de livrava de três anos de prisão preventiva, mais uns quantos de julgamento, mais apelos, e sei lá que mais. Enfim, do mal, o menos, não iam conseguir crucificá-lo antes dos setenta.

A mim, e pelo andar da carruagem, ainda são capazes de me crucificar mais cedo. E será muito bem-feito, dirá discretamente a Vânia.

1 comentário:

Anónimo disse...

necessario verificar:)