11.22.2006

47 – Feios, porcos e maus.

Conta-nos o genial Homero, na sua épica Odisseia, os tratos por que passou o heróico Ulisses, desde que se fez de vela das suas praias brancas de Ítaca, até que a elas tornou a aportar, ao encontro dos braços amantíssimos da inefável Penélope, que jamais desfaleceu de o aguardar. Nessas páginas se diz como o grande Odisseus, nome que também lhe davam, abicou um dia à ilha da feiticeira Circe, a qual, por mor de melhor reter no seu convívio o herói, transformou em leitões os seus companheiros. Está visto que Odisseus, ou Ulisses, se preferirem, não teve dúvidas em tirar-se do trabalho, e Circe ficou a ver navios.

Homero, para além de ser cego, acabou também por morrer, tendo escrito muito pouca coisa depois disso. E é por essa razão que só agora, transcorridos vários milénios, cabe a estas crónicas a honra de desvendar o que sucedeu, em última análise, a todos aqueles bacorinhos da Odisseia. Pois bem, folgo em informar que se encontram todos de boa saúde, e almoçam diariamente na mesa 19.

Serve esta crónica para falar de porcos, bácoros, cerdos, tós, javardos, em suma. Vem isto a propósito da recepção que tivemos hoje, logo ao entrar no restaurante. Fomos prontamente informados, não da ementa do dia, mas sim da de amanhã, que inclui pataniscas de bacalhau e, note-se, leitão. A informação foi prestada de modo cuidadosamente descuidado, e tudo nela parecia perguntar, Vão comer as pataniscas, ou preferem canibalizar um dos vossos semelhantes?

Eu julgo já ter expressado, algures nestas crónicas, a minha opinião de que nós somos vistos, naquele restaurante, como um bando de leitõezinhos, e não dos mais bem-educados. Com a maior boa-vontade, confesso que não vejo como o facto de fazermos muito barulho e arrotarmos ruidosamente (certo, isso sou mais eu), falarmos e rirmos alto demais (ups, eu, de novo), emporcalharmos a mesa, e espalharmos por todo o lado bolinhas de papel, nos qualifica como cevados. Mas enfim, vox populi, vox dei, e resta-nos aceitar o julgamento, o que fazemos sob protesto.

Porcos, e, porque não dizê-lo, feios (não eu, mas é o caso da maioria dos outros). Não contentes com isso, somos também maus. Muito maus, na realidade. Não quero com isto dizer que eu, por exemplo, tenha o hábito de fazer churrascos de gatos vivos, ou se costume o Rui vestir de menino Jesus, para se ir plantar à porta dos infantários, e dar pontapés às criancinhas que incautas se aproximem. Nada, somos todos boas pessoas, amigos dos pobres e dos petizes, cumpridores da lei, e com os impostos mais ou menos em dia. Somos, apesar disso, maus, mesmo muito maus.

Sofremos todos, para começar, de um grave problema de desobediência civil. Em cada cadeira da mesa 19, senta-se um leitão refractário aos Poderes Que Devem Ser Obedecidos. Uns questionam a estrutura hierárquica, outros o sistema corporativo, outros ainda, mais genericamente, essa vaga entidade que responde pelo nome de, Esta merda toda, mas não há ali bichos de boca aberta, no fito de engolir qualquer linha que venha com anzol e chumbada. Não há bons cidadãos na mesa 19, somos todos maus. Feios, porcos e maus.

A Vânia já percebeu isso, mas está em negação. Não compreende, por exemplo, que alguém seja tão incivilizado que, em vez de aceitar uma bebida com um agradecido curvar de espinha, peça arrogantemente outra. Mas mesmo ela já começou a entender que a coisa dá para os dois lados, e que nós acabamos por dar mais do que recebemos, e quando não damos, é tudo o mesmo, pois ninguém está a fazer contas a tal coisa. Um amigo, entre nós, não deixa de o ser, e se o vemos cuspir na nossa amizade, é só que o dia lhe está a correr mal, e quem é que se vai zangar por tão pouco?

São muito bonitas aquelas comunidades dos programas infantis, tipo “ursinhos carinhosos”, em que todos se derretem uns com os outros. Aquilo, todavia, vem tudo abaixo, mal soa o primeiro, Porra, dito a sério. Entre nós, se alguém disser, Tu, boi, paga-me o almoço, o boi em causa percebe que o amigo não trouxe dinheiro, e paga-lhe o almoço. E ninguém se aborrece. Que gaita, somos ou não somos amigos?

O Constâncio, por exemplo, anda há uns tempos sorumbático, e recusa-se a ler as crónicas. Quantos almoços passámos já, sem que se ouça a voz dele. Alguém se chateia com isso? Nada, limitamo-nos a mandar-lhe umas bocas feias, porcas e más, com as quais ele também não se aborrece. Que diabo, somos amigos!

Nós? Nós somos aqueles que partiram de Ítaca, e a quem a bruxa Circe transformou em leitões, e de quem fez feios, porcos e maus. Mas só acredita em bruxas quem quer, e ninguém tem de se ver pelos olhos dos outros. Feios seremos, sem dúvida. Agora porcos e maus, isso são os outros. E o leitor sabe de quem eu falo. Se não souber, é bem provável que seja de si.

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