11.29.2006

49 – Incenso e Pataniscas.

Noto, com algum pesar, que as crónicas mais recentes têm descambado num deplorável materialismo, coisa que está bem distante da nossa verdadeira vocação. A mesa 19 é uma instituição de pendor místico, mais um estado de espírito do que um estar à mesa a almoçar. Não é por acaso, de resto, que o número da nossa mesa resulta da fusão transcendente dos doze mandamentos com os sete pecados mortais. Quando somos muitos, e nos vemos forçados a recorrer à mesa 17, estamos novamente em presença do mesmo número, somente subtraído dos apóstolos João e Mateus. A conclusão é cristalina, tenho de deixar de comer aqueles cogumelos esquisitos.

Já devia tê-los abandonado há muito tempo, aliás, mas não consigo resistir à forma colorida com que tornam o mundo um lugar mais divertido para se viver. De resto, provocam muito menos enjoo o que cheirar cola, e são mais baratos que o brandy. Dizem gurus entendidos que o amor puro e devotado de uma mulher pode amiúde produzir os mesmos resultados, mas elas não são tão fáceis de arranjar, e é muito mais difícil fumá-las.

Nesse dia memorável, em que o astro apolíneo se escondia por trás das carantonhas com que Plutão ia mimoseando o nosso globo, flutuámos todos para dentro do restaurante, e pairámos pesadamente sobre a mesa 19. Arrancando-nos com alguma dificuldade da contemplação do nosso umbigo, passámos a contemplar a ementa, que nos propunha grosseiros alimentos do corpo, como pataniscas e leitão. Resignando-nos, com um suspiro, encomendámos pataniscas para todos, e leitão para todos, também.

Foi com a alma dorida que a Marta e a Vânia nos começaram a atestar a mesa de travessas. Elas bem viam como aquilo ofendia o nosso natural ascetismo, a pontos de sermos tomados pelo furioso desejo de destruir toda aquela comida, coisa que eventualmente fizemos. Quão melhor quadraria à pureza dos nossos espíritos um severo jejum, de pão seco e pura água. Em vez disso, castigámos a carne com inúmeros jarros de vinho, com que empurrámos o porco impuro, os fritos de bacalhau, gotejantes, todo aquele sofrimento da alma, que tão bem aproveitou à nossa salvação.

Brincámos ainda com a ideia de encomendar sobremesas, mas, vendo-nos a estalar com a dupla refeição, tivemos por bem dar o corpo por devidamente castigado, e partimos directamente para o purificador ritual do café. Esse sacramento, o mais santo do nosso severamente ascético cerimonial, faz copioso uso de certos óleos sagrados, que a nossa religião denomina ainda pelos antigos nomes célticos, como Croft, Jameson, e Eristof. Deles nos ungimos devotamente, e retornámos por fim aos nossos deveres, tardios mas purificados.

No dia seguinte não havia nada de jeito, e eu tive de comer arroz de pato. Ora digam-me lá, que tabernáculo é este, que propõe, para as suas celebrações, arroz de pato? O arroz, ainda vá que não vá, oferenda a recordar as privações que o povo de Moisés sofreu, no seu êxodo das terras do Egipto. Agora o pato, ave profana, espécie de galinhola dos lagos, bicho ainda por cima estúpido, mais do que lhe pedia a triste condição de palmípede? Bem sei que a dita arrozada vinha benzida com rodelas de chouriço e troços de bacon, mas não deixou de ser uma punhalada espiritual, a mortificar o nosso karma.

Temos de tomar uma atitude. Na próxima semana, sugiro que façamos a nossa exigência, refeições diárias de cordeiro de leite, morto e preparado segundo o ritual kosher. Galo degolado ao nascer do sol, com uma faca de gume de prata, e enfeitado com paus de incenso. Isso, ou então pataniscas. Ou leitão.

A Marta é outro problema. Continua a insistir em vestir-se à moda ocidental, em vez de usar as reduzidas vestes ornamentais das sacerdotisas de Baco. Não sei porquê, mas acho que nesse particular não nos safamos, não com ela, pelo menos. A culpa não é dela, é apenas mais um sintoma do ateísmo que vai pelo mundo. Não é fácil ser santo, nestes tempos, mas nós fazemos o nosso melhor por isso.

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