11.15.2006

43 – O gato das botas.

Constato, com contrição e algum pesar, que as crónicas mais recentes têm sobretudo ferido uma nota sisuda e filosófica, em detrimento daquele tom folgazão e divertido que caracterizou uma certa fase destes escritos. Ora bem, nem que seja apenas para desanuviar, proponho-me hoje, por excepção, tanger a imaginativa corda da fábula, e dar descanso aos pesados acordes da vida real.

Façamos então de conta que, por um primaveril pasto, retouçavam dois porquinhos, ou então três… sei lá, digamos que eram três. Para fugirem ao tigre mau, resolveram contratar um pato-bravo para lhes construir umas casas. O primeiro suíno cortou-se nos cobres, e chupou com uma casa de palha. O leão malvado pôs-se para ali a bufar, e a choupana deu com os burrinhos na água.

O segundo cerdo esticou-se um pouco mais, e teve direito a uma casota de madeira. Não que lhe tenha servido de muito, pois, logo ao primeiro resfolego da onça má, o casebre aluiu vergonhosamente.

O terceiro javardo armou-se em fino, e encomendou uma obra catita, toda em tijolo e betão. Veio o tubarão mau, e soprou, soprou, mas o estaminé aguentou-se à jarda. Isso deixou o cevado muito contente, até perceber que estava agarrado com os dois manos, que se tinham mudado para viver com ele.

Foi por essa altura que os pais do pequeno polegar decidiram que o puto, enfezado como era, comia mais do que aquilo que valia. Daí a porem-no com dono não se passou um credo, e logo o lenhador, que os pais irresponsáveis destas histórias são sempre lenhadores, ou gigantes, ou lenhadores gigantes, mas o lenhador, dizíamos, resolveu levar o catraio a perder-se na floresta. A coisa toda não lembra a um fundamentalista muçulmano, mas lembrou felizmente ao petiz, que lançou mão daquele truque que todos conhecemos, pedrinhas no chão, blá, blá, blá, blá. Conseguiu assim voltar para o pai, que ficou pior que estragado.

O lenhador era burro, mas teimoso. De novo levou o fedelho para a floresta, e – sendo o miúdo ainda mais burro do que ele – conseguiu levá-lo a perder-se novamente. É-se levado a pensar, com franqueza, se estas histórias não poderiam aproveitar bastante, caso aparecesse por lá um cérebro perdido, a oferecer os seus préstimos.

A besta do gaiato voltou a fazer o golpe das pedrinhas, mas o lenhador, num raro lampejo de inteligência, desviou a pista, de forma a afastá-la de casa. Terá sido por acaso ou por deliberação que a nova pista passou a conduzir à casa dos três porquinhos? O que interessa é que os suínos abriram a porta, os palermas, e isso foi o início de um belo churrasco, para o qual o pequeno polegar convidou os pais, que choraram muito, e foi bem feito.

A única relação entre esta crónica e a mesa 19 está, evidentemente, no seu título. A questão é a seguinte, nós nunca ali comemos coelho, mas fica a dúvida: se o comêssemos, traria na travessa bocados de botas, das de sete léguas?

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