1.05.2007

59 – Os velhos.

Hoje, a mesa 19 almoçou um pouco mais apertada do que é seu costume. Deveu-se o inusitado fenómeno à inesperada sobrepopulação da adjacente mesa 18, que, contra o seu hábito, se viu na contingência de acomodar seis fregueses não habituais. Mais precisamente, seis velhos.

Não é nada costume, aparecerem velhos naquele restaurante, mas desta vez lá estavam, e logo seis deles. É preciso que se diga que eles não são muito diferentes de nós, os velhos. Não, são simplesmente criaturas que vivem num mundo diferente do nosso, embora esse mundo calhe ficar precisamente no mesmo planeta. E até já viveram no nosso mundo, todos eles, pelo que nem sequer tiveram de ir para muito longe, quando ficaram velhos.

Dois deles eram mesmo meus conhecidos, de um tempo recente, quando ainda eram novos. São até ambos, por acaso ou não, senhores do meu maior respeito e consideração, e chamam-se ambos João. Quero dizer, cada um deles é que se chama João, não se vá aqui julgar que eles partilham o mesmo nome, à falta de terem um próprio. Não só o nome é o mesmo, mas também me trazem ambos as mais gratas recordações.

Um dos joões foi meu director durante muitos anos, e não me recordo de ter conhecido pessoa mais cordial e humana, mais preocupada com o bem-estar daqueles que dele dependiam. Lembro-me de um dia ter sido chamado à sua presença, após ter cometido o terrível delito de ser apanhado a usar a fotocopiadora de outro departamento, pelo quadrúpede que era o director do citado departamento. Queixa formalmente apresentada, lá compareci, trémulo, maçarico, no gabinete do João, essa figura superior, o Senhor Director. Ele olhou-me, com o seu ar sério, e disse-me, gravemente: Nuno, temos de ter cuidado com esse indivíduo.

Nunca mais esqueci esse sublime Temos, com que o todo-poderoso director do departamento me fazia a mim, pobre verme, cúmplice na sua guerra contra outro director. Hoje, olhando para trás, estou seguro de que se tratou do mais insignificante dos episódios da sua carreira, um que ele dificilmente recordaria, volvida uma semana. Em mim, todavia, deixou uma marca indelével.

O outro João trabalhou lado a lado comigo, durante quatro agradáveis anos. Devo admitir que começámos mal, coisa que me tem já acontecido com pessoas com quem, mais tarde, travei grande amizade. No nosso caso, atribuo o atrito ao facto de sermos ambos possuidores de temperamentos sardónicos, com vincada tendência para o pessimismo, isto para não dizer cinismo. Tais características foram como outros tantos cornos que se entrechocassem, e levámos algum tempo a tornar-nos amigos.

Foi, assim mesmo, uma amizade atribulada. Um certo optimismo, de que sofri na minha juventude, levava-me, por exemplo, a rejeitar a sua frequente asserção de que as coisas eram sempre o pior possível. Hoje, mais maduro, vejo que ele tinha razão, e que as coisas são, geralmente, o pior possível. Como tributo tardio, ou apenas pirraça, copiei o seu hábito de usar, nas reuniões que não lhe interessavam, um nariz vermelho de palhaço. Inteiramente por acaso, acabei por também reproduzir um outro seu costume – o de adormecer durante reuniões chatas.

Esta é a vera descrição, até onde o permite a minha memória, dos dois joões, enquanto jovens. Hoje, que os encontrei velhos, fico muito satisfeito por notar que se encontram como antigamente, e nem uma ruga ou prega adicional os distingue do que eram outrora. Também a idade não é excessiva, apesar de se encontrarem reformados. Porquê, então, chamar-lhes velhos?

A nossa idade é medida, não tanto contra os anos decorridos desde o nosso nascimento, mas sobretudo em relação à distância que nos separa do mundo exterior. Luís Vaz de Camões, se acaso ressuscitasse hoje, seria um velho, não por ter mais de quinhentos anos de idade, mas por se recusar a aceitar as mini-saias e as barrigas à mostra. Também os meus dois joões, caso um génio maligno os fizesse retornar, por um desígnio perverso, à vida activa, seriam incapazes de aceitar pacificamente a realidade actual.

Faça-se, por um momento, o exercício mental de colocar o director humano, simpático e preocupado com os seus subordinados, à frente de um departamento de uma corporação dos nossos dias, e facilmente se compreende que seria mais seguro confiar a guarda do peixe Nemo a uma fábrica de conservas de sardinha. Quanto ao outro João, o cínico, seria como levar o Diabo a um episódio ao vivo da Floribela, só para ele ver o que é o verdadeiro Inferno.

É isso que são os velhos, sobreviventes de um tempo em que o mundo, apesar de tudo, era bom para eles. A reforma, felizmente, ainda é melhor. Vendo-os hoje, a partir da mesa 19, dei por mim a invejar-lhes esse estatuto, essa imunidade ao mundo exterior. É que nós vivemos nesse mundo, e, sem embargo, começamos a sentir-nos velhos, muito velhos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu continuo a ser uma optimista crónica. Não que isso me tenha levado a lado algum até hoje. Apenas à desilusão crónica de verificar que as coisas são sempre o pior possivel. ainda assim, não desisti de ser optimista (ou burra)! Começo a assustar-me quando vejo que alguns meus pares já pertencem ao clube dos velhos... Meu velho, para lá caminhamos... Beijo Grande. Poker

Anónimo disse...

Nessa perspectiva, às vezes sou tão velhinha... :) mas os sonhos não me deixam envelhecer verdadeiramente. É, sempre gostei de paradoxos :) Um beijo muito grande, Nuno querido, e que 2007 te seja tão verde quanto o meu azul.