1.09.2007

60 – Do outro lado do espelho.

Estas já habituais crónicas, bem-intencionadas como são, correm por vezes o risco de, inadvertidamente, veicular uma ideia falsa, a saber, que não há quaisquer outros focos de interesse naquele restaurante, para além da mesa 19. Ora bem, isto não é verdade, não inteiramente, pelo menos. Embora nós sejamos, inegavelmente, a vida e alma daquela casa, a atracção principal, the best show in town, há que reconhecer ao respeitável estabelecimento outros pontos merecedores de um olhar moderadamente curioso. É deles, pois, que hoje nos ocupamos.

Serve esta crónica para falar de algumas figuras pitorescas que podem ser vistas no nosso restaurante, e que, não tendo a vantagem e a glória de ser a mesa 19, não deixariam assim mesmo de atrair o olhar interessado e cúpido de uma madame Toussaud, como possíveis e valiosas adições ao seu célebre museu. Em primeiro lugar, sem dúvida, destaca-se o grupo conhecido como “A turma do Harry Potter”.

São três, dois homens e uma mulher, que faz vividamente lembrar a despenteada professora Sprout, mestra de herbologia. Sprout significa rebento, em inglês, e ela parece-se exactamente com algo que rebentou, estando agora indecisa quanto ao que fazer a esse respeito. Nos bolsos, estou disposto a apostar, transporta a sua provisão de mandrágoras. Estas pertencem a uma casta especial, e não gritam quando são desenterradas, só quando olham para ela.

Os dois cavalheiros que a acompanham fazem um bom conjunto com ela, da mesma forma que um acidente de viação faz um bom conjunto com uma auto-estrada. A forma mais caridosa de os descrever é dizendo que, quando o grande feiticeiro Dumbledore executou a magia que lhes daria origem, algo correu terrivelmente mal. Mas não tão mal, infelizmente, que os impedisse de existir, pelo que ali os temos.

Durante anos, temos convivido com estas caricaturas, na bem-intencionada suposição de que estaríamos na presença de boas pessoas, malgré tout. Essa benévola crença desfez-se hoje, despedaçada contra a escarpada muralha dos factos, como onda que, sem deixar vestígios de si própria, vem agonizante morrer na costa. Deu-se que, por alturas da entrada em cena do trio maravilha, o egrégio Cardoso soltou em voz alta uma exclamação, que em nada se aplicava à dita família Adams. Eles, contudo, tiveram o entendimento contrário, sentando-se de má vontade na mesa adjacente à nossa, de onde se puseram a rosnar comentários boçais e despropositados.

A Vânia, essa santa, mais não vendo do que a postura apertada em que se encontravam os referidos brócolos, veio pedir-nos que nos chegássemos mais contra a parede. Nós, na nossa enternecedora equanimidade, isso mesmo fizemos, sem que tal merecesse sequer um aceno de agradecimento, por parte daqueles grotescos. Ainda pensámos desfazer o que tínhamos feito, mas era já tarde.

Durante todo o almoço, meditei tirar um desforço do insulto, algo subtil e elegante, refinado, tal como virar-me para eles, e mandá-los para qualquer sítio escatologicamente escabroso. Deteve-me, porém, o receio. No fim de contas, eles sempre são feiticeiros, e com isso não se brinca. Sei lá se ela não agitava o garfo, entoando, wingardium leviosa, e eu não ficava, de repente, com a cara de um dos amigos dela? Quem é que se vai arriscar a isso? Eu é que não!

Mas enfim, eles lá partiram, presumivelmente para irem transformar gatos em brasileiras de bares de alterne, e nós ficamos enfim sós. Isto é, sós, sem eles. Mas nada ficou perdido, que a maravilha não se esgota aqui.

Não, ele há muito mais, naquele restaurante. Ele há a mulher barbada, corpo de ninfa com cabeça de sargento mexicano; há a miss Piggy, que seria um digno complemento para a nossa mesa de marretas, se não fosse o facto de se parecer tanto, justamente, com a miss Piggy; há grupos sortidos de palermas, como os trios que repartem entre si cinco decilitros de vinho, e se queixam no fim de que têm a cabeça a andar à roda; há o javardo, cavalheiro simpático e muito composto, que não prova alimento algum sem o espalhar previamente pela camisa, e pedir o tira-nódoas; há o eremita, que se senta a um canto sem falar a ninguém, até que, recentemente, nos começou a falar a nós. Tudo isto são pequenos brilhantes, engastados em torno do diamante refulgente que é a mesa 19.

Hoje é um dia especial, o último dia antes do Natal, nos países de Leste. Verificámos, consternados, que a data passava em branco naquele restaurante, não obstante contarem, entre o seu pessoal, com o precioso contributo da Lana, russa de origem. Não lhe bastando ter de passar a natividade longe da família e dos amigos, a pobre vê-se ainda condenada a passá-la por entre a indiferença geral, findas que estão as boas-festas de toda a gente.

Não há muito que a mesa 19 possa fazer numa situação destas, mas alguma coisa estava ao nosso alcance fazer. Oferecemos-lhe uma vela em forma de estrela, prenda simbólica a desejar um Feliz Natal, por parte da mesa 19. Serve esta crónica, entre outras coisas, para exprimir o nosso desejo de que ela a acenda, na ocasião oportuna, e passe de facto um bom Natal. Foi muito pouco, bem sei, mas foi feito de boa vontade. Desta, em todo o caso, é que não se lembravam os gajos do Harry Potter.

1 comentário:

Anónimo disse...

Por favor, diz-me que pediste à Vânia que, muito discretamente, colocasse na mesa da turma do Herry Potter guardanapos com uma pequena inscrição: "http://mesa19.blogspot.com/(ver nº60)". Adoraria ver a cara deles... Beijo Grande. Poker