1.25.2007

68 – Videntes e Adivinhos.

Aquele que não sabe, e não sabe que não sabe, é um imbecil: matai-o.
Aquele que não sabe, e sabe que não sabe, é um ignorante: ensinai-o.
Aquele que sabe, e não sabe que sabe, é um sonhador: acordai-o.
Aquele que sabe, e sabe que sabe, é um génio: imitai-o.


Dedica-se a epistemologia, como tivemos hoje ocasião de debater, a estudar o conhecimento. Nela se discute o que conhecemos, e de que forma o conhecemos, quais as coisas que podemos realmente conhecer, e quais as que são, pela sua própria natureza, incognoscíveis. Esses mecanismos estão longe, ainda hoje, de ser bem compreendidos. Ninguém sabe, por exemplo, de que forma certas pessoas são capazes de prever que um avião vai cair, enquanto outras parecem simplesmente incapazes de apreender o facto óbvio de que nos estão a incomodar, e deveriam fingir que vão cagar, e não voltarem.

Dá-se ao primeiro grupo o nome de videntes, enquanto os segundos respondem normalmente pela designação genérica de imbecis. A distinção entre as duas categorias, contudo, é com frequência bastante ténue. Tentemos então analisar esse fenómeno, a fim de perceber melhor o que as diferencia.

Li recentemente, num blog, que dois videntes americanos foram convidados para opinar, num programa de televisão, sobre o rapto de um miúdo, desaparecido meses antes. A primeira destas luminárias presenteou os abatidos pais com a nova de que a criança estava morta, enterrada numa floresta. O segundo viu o petiz igualmente morto, mas nas traseiras de um camião. Um deles, não recordo agora qual, avançou ainda a útil descrição do criminoso, um indivíduo de raça negra, alto e magro.

All’s well that ends well, como já dizia o velho Shakespeare, e a história veio a conhecer o seu feliz desfecho dias depois, quando a polícia conseguiu finalmente encontrar o rapazito, extremamente vivo e bem conservado, para quem passara vários meses enterrado numa floresta nas traseiras de um camião, ou lá o que era. A mesma investigação permitiu deter o raptor, um homem caucasiano, baixo e gordo. Enfim, não se pode dizer que as previsões tenham saído completamente furadas: as autoridades são unânimes em admitir que não se trata, efectivamente, de uma mulher esquimó, coisa que nenhum dos dois sábios tinha sequer insinuado.

Como é usual em casos destes, deu-se um jeito à coisa, varrendo os cacos para debaixo do tapete. Os pais deram-se por satisfeitos com o Happy End, o que é perfeitamente compreensível. Afinal de contas, tinham o filho de volta, o que era tudo o que lhes interessava. Os dois ilustres videntes, esses, lá continuam a andar, e não consta que as suas carreiras tenham sofrido qualquer revés de monta. Au contraire, os respectivos negócios prosperam, e as clientelas continuam florescentes. É caso para comparar esta história a um daqueles quadros do “Onde está o Wally?”, e desafiar o leitor a encontrar os imbecis que estão aqui em causa. Para ajudar, vou só dar uma pista: não são os dois videntes.

Também em Portugal temos casos destes. Vi em tempos, num inenarrável programa da TVI (sim, eu sei que isto é uma redundância), uma coisa tipo Jerry Springer, mas com menos porrada, mas vi, dizia eu, a história, narrada na primeira pessoa, de uma jovem de vinte primaveras, bem apessoada e bonita, de aparência inteligente e culta, estudante universitária, pelo que depreendi. Conta-nos então a menina que, um ano antes, teria consultado uma vidente (sim, não é gralha, uma vidente), e que esta lhe haveria profetizado a morte, inexorável, do decurso de implacáveis doze meses.

Vendo-se forçada a lidar com o que, para ela, constituía um facto tão indiscutível como pôr-se o sol a ocidente, o que fez a nossa heroína? Pois bem, tratou de realizar todo o capital que conseguiu, recorrendo a créditos bancários (que, naturalmente, não iria pagar, já que estaria morta), e dedicou-se a viver o melhor possível o seu último ano, espatifando o dinheiro desonestamente adquirido.

Ora bem, terminou o ano e o guito, e a menina, vá lá alguém imaginar uma coisa destas, continuou viva, e a vender saúde. Pior, não apenas viva, mas também falida, e a braços com uma dívida do tamanho do orçamento de um porta-aviões. O que decidiu então a genial criatura fazer? Obviamente, processou a vidente.

A coisa toda parece uma anedota, bem sei, e eu não teria sequer acreditado na história, se não a ouvisse da própria boca da protagonista, que, claramente, não via nada de mal naquilo que narrava. Entre este molusco acéfalo, a multidão de outras amêijoas como ela, a equipa de produção que dedica um ror de horas a fazer o programa, e os milhões de cidadãos que o vêm, e acham aquilo tudo natural, volto a perguntar, onde está o imbecil? Tal como no caso precedente, faço a ressalva: não é a vidente.

Veio toda esta diatribe, que já vai ficando longa, a propósito do Rui Cardoso, que nos garantiu hoje, à mesa, ter lido a crónica de ontem, apesar de não ter estado cá. Por momentos, a mesa 19 tremeu. Tínhamos um iluminado entre nós, um profeta, um adivinho. Mas cedo se instalou a decepção, quando ele se mostrou incapaz de prever os números do euromilhões da próxima semana.

Isso, de resto, sempre constituiu para mim um mistério indecifrável. Por que cargas de água é que uma pessoa omnisciente, capaz de saber sobre mim coisas que eu próprio desconheço, tem a necessidade de subsistir à custa das magras dezenas de euros que vai conseguindo extorquir a um bando crédulo de idiotas? Por que raios é que não se limita a adivinhar o próximo número premiado na lotaria, garantindo assim o provimento das suas necessidades até ao fim da sua vida (cuja duração exacta, aliás, tem a obrigação de conhecer)? Os tais clientes, que ela diz só pretender ajudar, não são capazes de pensar nisto? Mais uma vez, onde é que está o imbecil?

Mas pronto, não bato mais no ceguinho. Como citava Conan Doyle, não me lembro já de que fonte, un sot trouve toujours un autre plus sot, qui l’admire. Ou, como se diz em Portugal, há sempre um pé torto para calçar uma chinela velha. São leis de mercado, nada mais.

Nota importante: a história do rapazinho americano foi retirada, com a devida vénia, do blog “Que Treta” (http://ktreta.blogspot.com/). Trata-se de um blog muito diferente desta bandalheira da mesa 19, que mistura tudo no mesmo saco. Não, aquele é um blog sério. Para quem ainda preze o discurso inteligente, a lógica analítica, aplicada com clareza e despretensiosimo, o cada vez mais incomum senso comum, ou simplesmente a velha arte de bem dizer as coisas, este blog não é recomendável. É obrigatório.

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