1.16.2007

62 – Os vampiros.

Eu, confesso-o sem rebuço, tive sempre uma certa pecha, alguma queda, pelo tenebroso oculto. Não seria por acaso que a minha sala privada de chat se chamava “cripta”, não é decerto por acaso que o meu outro blog se chama “sepulcro”. É uma daquelas coisas que fazem parte da pessoa, eu gosto de cadáveres ressuscitados, de almas condenadas que não podem ser mortas, de mãos esqueléticas que, animadas de um propósito sombrio, prendem como garras os membros dos vivos. É por isso, de resto, que eu gosto da mesa 19.

Serve esta crónica para falar dos não-vivos, de assombrações danadas, de avantesmas que se erguem à meia-noite, por entre renques de ciprestes, para devorar a carne e o espírito dos viventes. Falaremos sobretudo dos vampiros, energúmenos do Inferno, que só logram viver através da morte de outrem. Se o tempo o permitir, abordaremos ainda os lobisomens, as múmias, e o senhor José, que vende gelados na praia.

Os morcegos têm as suas grutas para habitar, e o vampiro, encarnação demoníaca do morcego em forma humana, não dispensa igualmente os seus redutos. Um desses refúgios, revela-se aqui em primeira-mão, é justamente o restaurante que nos vem ocupando ao longo destas crónicas, aquele onde se situa a mesa 19. Os altares desse templo são variáveis, sendo um deles, justamente, a supracitada mesa.

Há vampiros na mesa 19, e, bem assim, há vampiros em volta da mesa 19. Destes últimos, foi recentemente apontado o caso da mosca do Paulo, Nosferatu em versão artrópode, que diariamente se faz matar, apenas para reaparecer incólume no dia seguinte. Mas há pior, há também vampiros humanos, veja-se, por exemplo, o caso da Lana.

Não é preciso ser nenhum génio para perceber que a Lana é um vampiro. É loura, é eslava, tem olhos misteriosos, que outras provas querem, com mil diabos? Dizem-me o quê, que ela nunca mordeu o pescoço a nenhum de nós? Pudera, também ninguém lhe deu essa oportunidade. Tivesse-a ela tido, e estou certo de que pelo menos um de nós andaria hoje a encontrar-se com ela, noite alta, por entre as lajes pálidas de um cemitério sombrio. Ela traria um vestido branco e vaporoso, de fundo decote e saia reveladora, e beijaria profundamente a sua vítima, com os seus lábios sanguinolentos e carnudos… porra, em que é que eu estava a pensar, para não ter já alinhado nisso?

Há depois a Marta, um evidente vampiro. Ela nem sequer disfarça, com todas aquelas pinturas e batom. Ela bem brinca e galhofa, mas o olhar revela uma certa frieza, que mostra bem que ela não tem menos de seiscentos e quarenta e oito anos, embora esteja muito bem conservada, para a idade. Até já me lembrei de lhe morder o pescoço, mas não me atrevo, ela era capaz de ser mais rápida.

E há a Vânia, claro. Essa está empenhada no projecto global, a honra e glória do templo dos vampiros. Não pretende sugar-nos um a um, o que ela quer é o sangue da mesa 19. É por isso que nos vai pescando, no seu modo bem feminino: puxa primeiro, dá linha depois, agora com um sorriso de aprovação, logo com um esgar de desprezo, o que é preciso é cansar o peixe. Ou, no nosso caso, a carne.

Mas, aí é que os planos dela saem furados. A Vânia não nos pode vampirizar, porque nós, na mesa 19, somos também vampiros. Pior, somos verdadeiros vampiros profissionais, enquanto ela, coitada, não passa de uma amadora.

Entendamo-nos, todos os comensais da mesa 19 têm a mesma ocupação, ao serviço de uma causa que, como tantas outras por aí, não passa de um cadáver adiado, projecto nado-morto, infeliz intento de mandar um foguete ao sol durante a noite, quando não faz calor. E nós, que honestamente deveríamos firmar-nos na nossa idoneidade, e denunciar a infeliz palhaçada, optamos por sobreviver em meio à necrose, chupando a veia exangue da ideia moribunda. Nós somos todos vampiros, e é por isso que nos damos tão bem ali.

Depois, houve aquele dia em que o patrão veio falar connosco. Estava lua cheia, e as suas presas rebrilhavam, alvas, por entre os negros pelos do seu rosto. As garras crispadas… mas, não, isso fica para outra crónica.

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