1.23.2007

65 – Ofício de defuntos.

A Vânia ficou aborrecida com a minha última crónica. Diz que não gostou, e só leu metade. Para a pôr bem-disposta, e consolá-la, resolvi escrever sobre um tema que eu tivesse a certeza de lhe agradar. Aqui está, Vânia, esta é para ti.

Como é facilmente compreensível, esta actividade rotineira de escrever regularmente uma crónica desperta alguns problemas, sendo o primeiro dos quais, justamente, o problema de escrever regularmente uma crónica. É que isto não é forja de ferreiro, como dizia o velho Eça, e as crónicas nem sempre estão cá dentro, em fila obediente, aguardando o momento de serem vertidas em papel. Às vezes, a coisa não sai mesmo, e pronto.

É nessas ocasiões que o autor dá voltas à cachimónia, dilacerado entre a necessidade de criar, e o vazio de nada ter que valha a pena criar. Foi despedaçado entre essas duas tenazes monstruosas que eu hoje, à falta de melhor tema sobre o qual discorrer, me lembrei de contar a história da minha morte.

É-me impossível ocultar ao leitor sagaz que se trata de uma história fictícia, como bem o comprova o facto de eu a estar a escrever. Não que eu duvide da capacidade dos espíritos para regressarem ao plano material, e narrarem a sua odisseia, mas custa-me sinceramente a crer que o façam num blog, sobremaneira num que se dedica a contar almoços fora de horas.

Não, a história é inventada, e eu não morri, mas façamos que sim. De que terei eu falecido, é algo que ignoro, mas a escolha é vasta. Enfarte, AVC, falência renal ou hepática, enfim, aqui ou além, deserção ingrata e extemporânea de órgão principal e crítico. Seja lá como for, uma peça primordial da máquina fez a sua greve, e o mecanismo parou de vez. Pois bem, e daí?

Bom, e daí, nada. Por todo este mundo, diariamente, são dados peidos com mais significado do que aquele de que se revestiria a minha morte. Nem pode sequer dizer-se que se trataria de uma grande tragédia. Não, o meu passamento, encarado desapaixonadamente, não é senão o mau fim de uma comédia que teve altos e baixos, é como que uma punchline fraquinha, a dar o final desapontador a uma anedota que não deixou de ter o seu mérito, mas que se estendeu demasiadamente, história muito longa para final tão sucinto.

Mas, sigamos adiante. De mortuis nihil nisi bonun, o morto é que é sempre o bom, o gajo porreiro, quanto mais não seja por estar morto, e o meu prezado cadáver não deve ser excepção. Fale-se então bem de mim, que eu mereço. Afinal de contas, neste velório, eu é que sou o gajo que está no caixão, ou não sou?

As notas necrológicas rezarão que se perdeu para o mundo o autor das crónicas da mesa 19, e a empresa, consciente pela primeira vez de que eu existo, no que vem como sempre atrasada, mandará uma coroa de flores. A mesa 19, ela própria, não deixará de ter um comentário simpático, género, Se o Nuno fosse vivo, já esse jarro não ficava a meio. A Vânia terá certamente uma frase amável e sentimental, e continuará depois a servir dobradas e arroz de polvo. A Marta e a Lana, sinto dizê-lo, não darão por nada.

É por estas e por outras que eu prefiro acreditar na próxima vida. Nessa, pelo menos, posso dedicar-me a assombrar o restaurante, e a mesa 19. Se eu já hoje sou o demónio particular da Vânia, imaginem o que poderia ser amanhã, com todas as vantagens de estar morto, a caveira e a mão esquelética, e a sombra gélida, e a baba gelatinosa, e sei lá que mais. A não existir essa possibilidade, vamos sempre chegar a uma conclusão única: andar por cá, ou não andar, vem tudo dar ao mesmo. E, se duvidam, esperem só até estarem mortos, e depois falamos.

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