1.22.2007

64 – Mediocridade.

Hoje estou aborrecido. A coisa começou logo mal, à hora do almoço, com a Vânia a fazer-nos guerra, e a dizer-me que se recusou a ler a última crónica, a partir de metade, porque não gostou do que lá escrevi. Respondi-lhe com as palavras de Pilatos, quod scripsi, scripsi, e mostrei-lhe cabalmente que tivera razão no que escrevera. Não serviu de nada, e ela continuou azeda. Eu, pelo meu lado, fiquei estomagado com todo o episódio, e saí de lá a maldizer o dia em que me lembrei de começar a escrever as crónicas.

A Vânia há-de por certo perdoar-me, e fazer as pazes comigo. Já tenho de resto escrita a próxima crónica, que lhe é dedicada, e que lhe irá decerto agradar. Fala da minha morte, aliciante que para ela será irresistível. Quem se deixaria, de resto, de comover com a minha morte, quem é que conseguiria esconder uma lágrima furtiva de alegria?

Mas pronto, o facto é que isto hoje não correu bem, e a parte da tarde afinou pelo mesmo diapasão. Aconteceu embrenhar-me numa douta discussão com um colega, versando um livro que trata do decréscimo de qualidade no ensino da matemática em Inglaterra. Eu defendi que também em Portugal, lamentavelmente, se tem verificado o mesmo fenómeno. A apoiar as minhas teses, tergiversei sobre o estudo, no décimo segundo ano, das estruturas algébricas, e da sua importância para a formação matemática. Foi neste ponto que a idiota de uma colega olhou para mim, e disse (cito ipsis verbis, para não me enganar), Mas o que é que este gajo bebeu ao almoço?

Serve esta crónica para falar de mediocridade, do culto persistente e consistente, se bem que talvez inconsciente, da lei do menor esforço, do menor valor, do nivelamento por baixo. Para discutir, tout court, a imparável proliferação de cerebrozinhos mesquinhos, como o desta desgraçada colega, gente que inverte o axioma da natureza que abomina o vácuo, e optam, ao invés disso, por abominar elas próprias tudo o resto, tudo menos o vácuo em que vivem, contentes e felizes. São os que nada sabem, e odeiam ferozmente quem quer que calhe saber algo.

Para esses energúmenos, a regra é simples: em terra de cegos, quem tem um olho é zarolho, e faria melhor em vazá-lo depressa, antes que os outros gajos descubram que anda ali um tipo que não passa os dias aos encontrões às paredes. É que quem não tem asas costuma levar a mal, quando vê alguém voar.

A lógica disto é escorreita, tu não tens nada que saber o que eu também não sei, e pronto. Perdidos nos primórdios do século findo, ficam os tempos em que uma conversa era uma forma de trocar informações, um mecanismo que permitia às pessoas aproveitar os conhecimentos de outrem para, justamente, ficar também a saber o que essa pessoa sabia. Hoje em dia, uma conversa tende a ser mais uma competição com regras viciadas, em que tudo o que é dito tem de ser previamente conhecido, sob pena de se estar um gajo a armar em esperto. E se alguém se obstina em falar de algo que os outros não sabem, é marcado como um alvo a abater, e acabam por lhe perguntar se não bebeu demais.

A primeira vítima disto, evidentemente, é a filosofia. A filosofia costumava ser uma arte que se cultivava, uma forma de estar no mundo, uma súmula da visão que cada um tinha dos vários aspectos da realidade. Cada conversa era uma oportunidade para aperfeiçoar e enriquecer a nossa filosofia pessoal, submetendo-a a novos factos, ou diferentes visões dos mesmos factos. Nos nossos dias, isso tornou-se algo pura e simplesmente inadmissível. Experimente alguém ter em público uma frase filosófica, e logo vai ver como elas lhe mordem. Aceitável, quando muito, é citar autores, germânicos ou gregos, mas jamais discutir que coisa eles defendiam. As pessoas em nossa volta serão capazes de nos tolerar a sapiência, mas jamais nos permitiriam a ideia.

Assim vai empobrecendo o nosso panorama intelectual. Os blogs com uma ideia escasseiam, a conversa do dia-a-dia é reduzida ao mínimo, ao trivial, à imbecilidade, e espaços como a mesa 19 tornam-se cada vez mais preciosos, ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais raros. E eles fazem falta. Ora digam lá, onde é que se arranja, nestes tristes tempos, alguém com quem ter um bom debate sobre o aborto, ou a política internacional? É fácil discutir o euromilhões, sob o prisma da fortuna que traria, mas quem se interessa por analisar o seu modelo matemático, e estatístico? Com quem ponderar, com sérios prós e contras, a finalidade do nosso Universo, ou a hipotética existência de um Deus? Não é que se discutam forçosamente todas estas coisas em volta da mesa 19, mas o espaço para discussão está lá, um espaço sério sem ser sisudo, irreverente sem ser irrelevante, e espaços destes merecem ser preservados.

Em meio à calamidade geral, a hora do almoço é como que uma ilha de repouso intelectual, em meio ao oceano de estupidez que diariamente navegamos, é o justo repouso do náufrago que passa o resto da jornada a tentar calar o que pensa, que é para não ter de passar por bêbado. E, enquanto nos debatemos nesta luta desigual, vem a Vânia bater ainda mais no ceguinho, pretendendo que dissemos mal da comida do restaurante, e sei lá que mais! Ora, adeus! Estava quase capaz de dizer, Beati paupere spiritu, mas acho melhor calar-me, ou ela ainda se zanga mais comigo. O que vale é que a crónica que vem sempre será mais animadora, pois é aquela em que eu morro. E isso é só a crónica 66, imaginem quando chegarmos à 666.

1 comentário:

ana disse...

Revejo-me integralmente nest crónica. É um assunto que me preocupa e entristece, que em resumo me estomaga.