1.31.2007

71 – De mortuis.

Porra, isto já é perseguição. Eu bem que tento ser um rapaz sério e bem comportado, mas parece que há um demónio perverso e badalhoco, que não me larga. Hoje, por exemplo, saí mais cedo, com toda a compostura e gravidade, a fim de comparecer a um velório. Ao chamar o táxi, com toda a solenidade que a ocasião requeria, o telemóvel brindou-me com uma voz irritante, informando que tinha menos de um euro de saldo. Feita a chamada, o ecrã mostrou a quantia restante, 69 cêntimos!

Já chega, caramba! Desde que escrevi uma crónica, imprudentemente javarda, subordinada ao tal 69, a coisa não tem parado. Ele é 69 para aqui e para ali, 69 em todo o lado, até no telemóvel. Tanto 69 já me começa a despertar a ideia de pôr a coisa em prática, mas há obstáculos. É claro que podia engatar uma miúda simpática, mas teria de começar por a convidar para jantar comigo, e é a isso que eu não me atrevo: estou certo de que a conta importaria em 69 euros.

Mas isto foi apenas um desabafo, pois não é dessas poucas-vergonhas que hoje se trata. Tout court, serve esta crónica para falar da morte, fenómeno em si próprio simples, mas ao qual nunca resistimos a associar tanta coisa complicada. Tomem-se, apenas a título de exemplo, as disposições do acordo de trabalho do meu sector, no que respeita a ausências ao serviço por falecimento de um parente próximo.

A questão surgiu hoje, em volta da mesa 19: quais os direitos que me assistiam, no caso de morte de uma tia (tias legítimas, das que são irmãs da mãe, e não aquelas de Cascais)? Muitos aventaram que eu teria direito a dois dias de ausência. Eu nem sequer queria tanto, bastava-me um para poder assistir ao funeral, e viria trabalhar no seguinte. Mas nunca gostei de me apropriar indevidamente fosse do que fosse, pelo que me dediquei, apenas regressado ao local de trabalho (por assim dizer), a compulsar a legislação existente. Foi aí que, imperceptivelmente, entrei na quinta dimensão.

Aprendi, com pasmo e estupefacção, que a morte de uma sogra me concede o direito a ficar em casa cinco dias (presumivelmente, serão três para comemorar, e dois para a ressaca). Por coincidência, tragédias como a morte da minha mulher, ou – pior ainda – de um filho, horrores capazes de destruírem a vida de um homem, são contempladas com os mesmíssimos cindo dias. A tia, pelo seu lado, não dá direito a nada, e pronto.

Mas a coisa ainda piora. A morte de um irmão, provável alma gémea, que desde a infância pertenceu à nossa vida, ou de um neto, anjo arrebatado na flor da mocidade, quantas vezes mais amado que um filho, dispensa do dever laboral, apenas, durante dois dias. Findo este prazo cruelmente escasso, há que engolir as lágrimas, fazer das tripas coração, e comparecer ao serviço. Sobre coisas destas, costumava perguntar o Jô Soares, E pode? E logo respondia, É claro que pode. O que ainda nos safa é que resta sempre a possibilidade de matar a sogra, logo a seguir.

Entendamo-nos: o passamento da puta da velha, que tipicamente se chama Gertrudes, e cuja morte apresentou o único inconveniente de ter demorado tanto a acontecer, concede ao trabalhador uma folga de cinco dias, para se ressarcir do presumível desgosto. Em compensação, o desastre do neto Joãozinho, tão querido e amoroso, que teve a infelicidade de ir desta para melhor quando caiu do baloiço, deixando os avós prostrados e inconsoláveis, apenas oferece aos ditos avós dois dias para se recomporem. Será que isto se percebe? É claro que se percebe. Afinal de contas, putos há muitos, e pode-se sempre fazer outro. Sogras, por outro lado, tendem a rarear, sobretudo ao ritmo a que a malta as vai matando. Trata-se, afinal, de um caso da mais elementar justiça.

O próprio termo, justiça, é em si próprio questionável. Recordo-me que já o Victor Hugo contava, nos seus Miseráveis, a história de uma jovem recém-casada, que procura o seu pai, lavada em lágrimas, queixando-se de que o seu marido lhe deu uma estalada. O pai, após ponderar a questão, presenteia a soluçante filha com um sonoro chapadão nas trombas, daqueles de criar bicho, e diz-lhe, “Pronto, estás vingada. Vai dizer ao teu marido que, se ele bateu na minha filha, eu bati na mulher dele”. Pois é, são conceitos diferentes de justiça, e eu entro a desconfiar que os juristas que regulamentam as ausências ao trabalho também leram este livro.

Os exemplos absurdos não faltam, para mal dos nossos pecados, e desgraçada desta crónica, se os tivesse de narrar a todos. A questão do referendo à IVG, por exemplo, tem sido fértil em disparates, tanto de uma parte como da outra. Não quero de modo algum enveredar por esse assunto, mas não resisto a contar uma curta história.

Vi recentemente uma reportagem, sobre uma paraplégica que necessitou de fazer um aborto. Não teve qualquer culpa da sua gravidez, que se deveu à interacção de um novo medicamento, com a pílula contraceptiva, levando esta a perder o efeito (sim, até as paraplégicas têm direito a ter vida sexual). Dado que a sua condição física (malformação do útero) a impedia de levar a bom termo uma gravidez, e implicava sério risco de vida para ela, dirigiu-se aos competentes serviços de saúde, munida do atestado que o médico lhe fornecera. Estava dentro da lei, com os diabos, e não tinha nada a temer.

É aqui que a história se torna surrealista. A senhora é recusada por todos os hospitais aonde se dirige, e onde lhe chegam a dizer, “Isto é um sítio onde se vem para parir, e não para abortar”. A solução poderia ser encontrada por via legal, mas as tais 10 semanas não deixam muita folga à nossa morosa justiça. Acossada, a pobre senhora fez o que qualquer outra faria: foi abortar a Badajoz.

Isto, a meu ver, é um ponto importante. Os defensores do Sim dizem que urge acabar com uma situação iníqua, na qual as mulheres são obrigadas a ir ao estrangeiro, se têm posses para tanto, ou sujeitar-se a condições indignas e degradantes, no caso contrário. Mas acontece que, mesmo nos casos em que a lei actual já permite a IVG, as tais condições dignas não existem, e o aborto legal, na prática, faz-se nos mesmos termos do clandestino. Se mudarmos a lei, de que é que isso vai adiantar?

E assim vamos vivendo. Por todo o país se discute, com garra e paixão, a hipótese de trocar uma lei que não funciona, por uma outra, igualmente ineficaz. O meu patrão, pelo seu lado, vai-me dizendo que a morte da minha sogra, que eu provavelmente empurrei pelas escadas abaixo, é tão grave para mim como morrer-me um filho, e duas vezes e meia mais grave do que morrer-me um neto. E isto já não causa espanto a ninguém. Estupidez? Não. É só uma forma de estar na vida.

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