12.14.2006

56 – Eu, Carolino.

Devido à época dos feriados, o autor ver-se-á impossibilitado de escrever atempadamente algumas das crónicas. Estas serão escritas por autores convidados, em sua substituição. A presente crónica foi escrita, a nosso pedido, por um conhecido prostituto da nossa praça, a quem chamaremos, por razões de privacidade, Carolino.

Olá, chavalos, eu sou o Carolino. Esse não é, no entanto, o meu verdadeiro nome, sabem? Eu queria escrever isto em meu próprio nome, porque quem não deve, não teme, e eu gosto de andar de cabeça bem erguida, mas disseram-me que não, que havia umas porras, e que era melhor assim… enfim, consenti. Mas não quero que haja confusões, eu sou uma gaja honesta, e não tenho medo de ninguém.

Lá por uma miúda como eu andar uma dúzia de anos ao cabrito pelos bares de alterne, não quer dizer que façam dela uma mulher da vida. Eu sou uma rapariga séria, e, embora tenha mais pelos nas pernas do que uma cabra angorá, ainda sei ser muito sensual. As minhas relações com aquele restaurante são o que são, e ninguém viria agora falar nisso, se não fosse essa pulhice das crónicas, que veio despertar a opinião pública. Mas eu mantenho o que disse, o meu relacionamento com a mesa 19 foi sempre pautado pelo maior respeito. Eu disse pautado, seus morcões, não se ponham agora a fazer trocadilhos sem graça.

Eu sou, a bem dizer, uma dama de companhia. Os clientes chegam, e querem uma dama para lhes fazer companhia, e é aí que eu avanço. Há uns que são mais esquisitos, e pedem uma mulher que seja mesmo mulher, mas a maioria contenta-se comigo. A mesa 19 é um caso diferente, ninguém ali pediu os meus serviços. Eu vim, por assim dizer, com o pacote, fui somente uma oferta, algo que foi dado. E acreditem-me, quanto a isso de dar o pacote, eu sou entendida.

Mas vieram depois para aí com boatos e insinuações, que eu isto e mais aquilo, que eu era a pedicura da mesa 19, e ainda lhes aparava os pelos das orelhas. Disseram mesmo que as crónicas eram uma metáfora, uma alusão velada a coisas mais carnais. Pois bem, é mentira, as crónicas são o que são, e eu sou uma rapariga honesta, acho que já disse isto.

Também nunca cortei as unhas dos pés da mesa 19, como se diz por aí. Sucedeu apenas que eu, em alturas de maior nervosismo, comecei a roer as minhas unhas até ao fim, começando depois a roer unhas alheias, e as dos pés estavam mais à mão, desculpem lá o trocadilho.

Não me parece também justo ser coimada de prostituta, apenas porque fui algumas vezes apanhada com a boca na botija. A boca é minha, que demónio, e eu meto-a nas botijas que quiser. Lá porque a mesa 19 é feita de gente séria, não quer dizer que eu não seja séria também. De resto, vou por a toda a gente um processo em tribunal, e aí é que vão ver quem é a puta.

Quanto ao resto, desejo à mesa 19 as maiores felicidades. Teriam mais sorte se mudassem de sítio, e viessem, por exemplo, até ao meu bar. Mesmo sem isso, vão em frente, e nunca parem, suas grandes badalhocas.

12.11.2006

55 – Admirável mundo novo.

Devido à época dos feriados, o autor ver-se-á impossibilitado de escrever atempadamente algumas das crónicas. Estas serão escritas por autores convidados, em sua substituição. A presente crónica foi escrita, a nosso pedido, por um imbecil.

Olá, estão todos bons? Eu sou o Bernardo Bobone, e foi com grande satisfação que aceitei o convite para escrever esta crónica da mesa 19. Para dizer a verdade, estou mesmo um pouco excitado. Ora bolas, para quê mentir, estou muito excitado. Já não me sentia assim, sei lá, desde o dia em que comprei o GPS para o meu jipe (eu só uso o jipe para ir para o trabalho, que é para não o sujar, mas se um dia for viajar com ele, aquilo vai dar muito jeito).

Eu sou um grande admirador da mesa 19, sabem? Acho giríssimo que as pessoas se juntem assim, e digam coisas inteligentes, e todos se riam muito, e tudo. Eu também já tentei fazer isso, mas o problema é que nunca me lembro de nada para dizer. Mesmo assim, de vez em quando lá sai alguma coisa, mas depois todos se riem, e eu não percebo porquê, porque aquilo nem era para ter piada. Mas pronto, o importante é que as pessoas se divirtam.

Apesar de tudo, sinto-me na obrigação de formular algumas críticas à mesa 19. Não me parece bem, por exemplo, que se beba tanto ali. Bem sei que as descrições do autor costumam ser um pouco exageradas, mas sempre se chega a gastar ali, sei lá, um litro de vinho, e às vezes ainda há digestivos. Não é por mais nada, mas são pessoas que ainda vão trabalhar a parte da tarde, e estou seguro de que o patrão não gostaria de os ver beber tanto. Eu, pessoalmente, nunca sei quem me está a ver, e por isso só bebo ice-tea.

Outra coisa que acho mal, é o tempo que eles gastam a almoçar. Sejamos honestos, aquilo são pessoas empregadas, que recebem um ordenado para desempenharem um certo trabalho, num determinado horário, e a quem o empregador atribuiu sessenta minutos para almoçar. Demorar quase duas horas nessa função, é cometer uma fraude. Eu próprio nunca gastei mais de cinquenta minutos a almoçar, mas depois, quando o meu director me veio pedir para ser mais produtivo, arranjei maneira de diminuir o tempo para vinte minutos. E até tive vantagem nisso, estou muito mais magro, agora.

É que é preciso ver como estão as coisas, hoje em dia. Os empregos escasseiam, e há que manter aquele que temos. É claro que isso implica alguns sacrifícios, como o horário alargado, os fins-de-semana trabalhados a título gracioso, os turnos de prevenção gratuitos, mas é preciso olhar para isso como um privilégio, e não como uma imposição. A coisa podia ser bem pior, podíamos estar todos a viver debaixo da ponte, em vez de ter um patrão que ainda nos vai pagando um ordenado.

Eu aprendi muito cedo a minha lição, temos que lhes dar o que eles nos pedem. É bem possível que não consigamos chegar a lado nenhum dessa forma, mas qual é a alternativa? Vamos correr o risco de irritá-los, fazendo o que nos apetece, e expor-nos a perder o emprego? Não há volta a dar-lhe, quem está na mó de cima manda, e quem está na mó de baixo tem de aguentar.

Bolas, e eu, com isto tudo, acabei por não escrever a crónica que me pediram. Paciência, agora também já não pode ser. Estou cheio de pressa, o meu chefe convocou-me para uma reunião de última hora, às oito da noite. São sempre de última hora, estas reuniões, e esta nem é muito má, a do outro dia foi às onze da noite. Enfim, há que fazer alguns sacrifícios, neste mundo corporativo.

Se me voltarem a convidar, prometo que escrevo uma crónica a sério. Até já me lembrei de um tema, farei uma breve dissertação sobre a sodomia passiva, e as formas como esta nos pode ajudar na nossa carreira profissional. Até lá, despeço-me, com um grande Xi, do

Bernardo Maria Bobone
Otário Certificado.

12.07.2006

54 – Quem matou a mosca morta?

A mesa 19, lesta e perspicaz como sempre, há muito tempo descobriu que o homem santola tem uma mosca de estimação. Tem tal mosca a peculiaridade de não andar com ele, mas antes se antecipar, e comparecer meia hora antes nos sítios aonde ele irá, alado arauto a trombetear a chegada do seu fidalgo. Ora bem, essa mosca está, desde hoje, na situação de desaparecida, presumivelmente morta.

Serve esta crónica para falar, justamente, do desaparecimento da mosca do Paulo Sousa. E, nada de confusões, desenganem-se aqueles que têm o tema por mesquinho ou insignificante, pois o assunto é da mais magna importância. É que aquela mosca, mais do que um simples artrópode, era um símbolo, um estandarte de liberdade, de dignidade humana, como que uma súmula dos direitos do homem, impressos em três milímetros de corpo preto e zumbidor.

Quando a mosca do Paulo voava sobre a mesa 19, nós figurávamos avistar nada menos do que um esquadrão da aviação inglesa, cruzando os céus da França ocupada. Aquela mosca chegava-nos de longe, vinha ferida e amarrotada do esforço de ter atravessado as baterias inimigas do lugar-comum, as mesmas que decretam não poder um homem ir a mais do que um restaurante na sua hora de almoço. Fazendo tábua rasa de tais bombardeamentos, a boa da drosóphila pairava sobre nós com a sua boa nova, anunciando que o Paulo triunfara de novo sobre os espíritos tacanhos, e era ali esperado para um digestivo. Onde estás agora, mosquinha? Quem te matou?

Encaremos a coisa como um caso de polícia. A primeira suspeita, evidentemente, é a Vânia. Não há que duvidar, ela foi já vista a tentar matar a mosca, e só os nossos esforços combinados foram capazes de a impedir. Quem sabe se, noutro dia qualquer, a boa da moça, vendo-se livre de tais peias, não acabou por consumar o mosquicídio? Móbil do crime, um mero boicote à mesa 19, um desejo maléfico de impedir a livre circulação de ideias, que ali tão habitualmente se pratica.

Temos depois a Marta. Ela bem disfarça, mas nós sobejamente sabemos como ela luta para se chegar à mesa 19, sempre que pode. A Vânia costuma ser um obstáculo intransponível, e matá-la, de qualquer modo, dava muito nas vistas, mas uma mosca é diferente. A Marta, definitivamente, é uma suspeita a considerar.

Temos depois a Lana, caso, entre todos, o mais provável. Compreende-se bem que o KGB, confrontado com um núcleo de pensamento livre, tenha accionado a sua agente no local, a loura e eslava Lana. A ideia seria matar todos os comensais da mesa 19, mas estes espiões russos já não são o que eram dantes, e matar uma mosca é uma alternativa viável, bem à dimensão da guerra fria dos nossos dias. Sim, a Lana é a minha suspeita favorita.

Depois, há os elementos da própria mesa, que se podem ter ressentido das atitudes do santola, ou, até, da sua própria existência. Mas acho isso menos provável, dado que não é nosso hábito ter consciência seja do que for. Mas são suspeitos, tout de méme, e convém não os esquecer.

Tudo considerado, acabamos por ficar sem saber quem matou a mosca do Paulo. E é assim que as coisas devem ser, nós vivemos num mundo de hipóteses, e não de realidades. Real, para nós, é apenas o termos de morrer um dia, coisa da qual, de resto, não estou inteiramente seguro. Tudo o resto é especulativo, e esta crónica não lhe fica atrás.

Mas a especulação é boa, ou pelo menos tem de sê-lo, dado não termos mais nada. Especulação por especulação, eu acho que o assassino é a Vânia. Porquê? Bem, por que sim, ora essa. A coisa é evidente, tão óbvia como ser o Paulo uma sanduíche de berbigão. Ou uma tangerina azul, como facilmente se demonstra.

12.06.2006

53 – Epifania.

Já desde há dias que a Vânia nos tem dado algumas lições básicas de psicologia. Ora, todo o conhecimento tem as suas consequências, e este não foi excepção. Durante o almoço de hoje, entre nacos de porco e feijão com chocos, vivi inesperadamente uma experiência sobrenatural. A pouco e pouco, comecei a perceber melhor aquela coisa, até que, sem que nada o fizesse prever, desceu sobre mim o espírito de Sigmund Freud.

Interroguei-me, a princípio, sobre que coisa seria aquela, pouco afeito, como sou, a ser possuído por fantasmas, ainda que notáveis, mas a evidência impôs-se: eu era de facto o velho Segismundo, completo com a barbicha de bode, e a careca de supositório. Investido da minha nova personalidade, observei, com um olhar subitamente perspicaz, as pessoas que me rodeavam.

A Vânia, claro, em primeiro lugar. Que coisa mais óbvia, como foi que eu nunca me apercebi do síndroma obsessivo-compulsivo que a domina? Ela é obsessiva, isso é evidente. Mais, sofre de obsessões, e de compulsões. As compulsões são notórias, tanto como as obsessões. É isso, obsessiva e compulsiva. Ela não o pode evitar, juro-o, e seria capaz de passar aqui o dia a repetir, a Vânia é compulsiva. E obsessiva. Eu já tinha dito isto?

Segue-se o Cardoso, um caso evidente de esquizofrenia. Eu também acho. As suas múltiplas personalidades disputam o tempo do almoço, e isso vê-se na forma como come. Desculpa, não percebi, podes explicar isso? Claro, o que acontece nele é que uma personalidade come o bacalhau, outra a carne, duas outras bebem o tinto e o branco… Pronto, já entendi. E isso é grave? Até certo ponto, a esquizofrenia é uma forma de loucura. A sério? Caramba!

Vem depois o Zé Eduardo, claramente paranóico. Não apenas isso, mas acho que ele está combinado com os gajos que andam atrás de mim. Ele fala de conspirações, da CIA e da Mossad, mas a conjura é outra, eles querem é apanhar-me. Mas eu sou mais esperto, finjo que caio naquela conversa, como se ele não fosse paranóico, mas, às ocultas, vou juntando cartão em casa. Quando eles vierem, vão encontrar-me pronto.

O Carlos, sabem, é psicopata. Tem ilusões tremendas, podendo mesmo chegar a matar pessoas por causa das suas alucinações. É, igualmente, uma grande tangerina azul. Isso, ou um búzio, dependendo dos dias. Gosto muito dele, é claro, mas ele é um búzio, e os búzios têm de ser eliminados. Vou fingir que não percebi que ele é um mutante, e tentar aproximar-me sem ser percebido. Deverei usar uma faca, ou estrangulá-lo com uma corda de piano?

O Constâncio é maníaco-depressivo. Desculpem, eu não queria dizer isto. Retiro tudo, só não quero que se zanguem comigo. Sinto-me tão sozinho. Não queria dizer mal de ninguém, só apontei um caso, puramente hipotético, de depressão bipolar. A verdade, desculpem, é que ele passa períodos soturnos, seguidos de outros de exultação. É isso que se chama bipolar, não é? Hein, hein, é ou não é? Embora aí, vamos alugar um carro de som, e gritar a palavra ao mundo! Bipolar! Eia, eia, eia…

O Catarino, há muito que o sabemos, é um pervertido sexual. As suas acções não se afastam da normalidade, até que passe ao seu alcance uma mulher bonita. Aí, ele perde o controlo, não sabe o que diz… mulher linda, perdão, do que estávamos a falar? Que se lixe, anda cá, borracho, nham, nham, nham.

Só falta, nesta breve análise, a minha humilde pessoa. Sinto desapontar a audiência, mas eu não sou maluco. Nesta fantasia, eu sou o psiquiatra, que é o único que goza do privilégio de não ser louco, por mais que viva a loucura dos outros. Por isso, e por maioria de razão, eu não sou doido. Não, eu sou uma galinha.

12.05.2006

52 – De boas intenções…

Somos um país devoto. Ou seja, somos um país de devotos. Negue-se o que se quiser, mas isto não há que negar. Comprovei-o hoje, se de comprovativo necessitasse, ao embarcar num táxi que exibia, pendente de uma corrente respigada de um rosário, uma cruz de Cristo. Enxertada na mesma corrente, outra cruz pendia, bem como uma medalha, quem sabe se de São Cristóvão, padroeiro dos viajantes. No retrovisor dependuravam-se ainda os elos de outra corrente, talvez suspirando saudades de uma terceira cruz, entretanto extraviada.

Senti-me feliz e confortável, ao embarcar no carro de praça. Na selva do nosso dia-a-dia, senti-me ali como que tendo abicado a porto cristão. Fossem quais fossem as vicissitudes do caminho, contava pelo menos com um guia sereno, pio e canónico. Não foi, portanto, pequeno o meu espanto, quando vi aquele suposto apóstolo da temperança apostrofar animalescamente um peão, que cometera o solecismo de tentar atravessar na passadeira.

Mais percurso andado, os crimes de ódio iam-se sucedendo, um acintoso negar de prioridade, depois um triunfo espúrio, ao cruzar a frente de outro veículo, na entrada de uma rotunda. A cada manobra violenta, as cruzes oscilavam, e era de recear que o próprio Cristo se fosse já sentindo enjoado.

Esforcei então a memória, vasculhando pacientemente na velha arca poeirenta que é o meu escasso conhecimento bíblico. Diria o Sermão da Montanha, numa qualquer obscura bem-aventurança, que era dos alarves o reino dos céus? Penso que não, assim como não pertencerá também aos mais rápidos, ou sequer aos mais mal-educados. Parece que o cobiçado reino, depois de feitas as contas finais, ficará propriedade dos mansos, nem mais nem menos. Tudo certo, mas quem são eles, esses mansos?

No triste mundo em que vivemos, os mansos mais comuns são os cornos mansos, mas é discutível que a bem-aventurança se refira a eles, sob pena de se povoar o Paraíso com um mar de chavelhos, que não tiveram outra virtude que a de se terem deixado comer por alguém que, justamente, se deixou comer por alguém. A não serem os cornudos, terão de ser os calmos, os serenos, os que mantêm a calma e a equanimidade, os que dão mais do que recebem, contribuem mais do que usufruem, e serenamente vão fazendo deste um mundo melhor, um ensaio de Paraíso na Terra.

Não há cruzes na mesa 19, tanto quanto até hoje me apercebi. Também não há mansos, talvez por sermos ainda muito novos. Mas, sem cruzes nem medalhinhas, estamos bem mais perto do Céu do que aquele motorista de táxi. E estou em crer que os mansos, quando chegar a altura da verdade, mais depressa nos deixam entrar a nós no Céu, do que ao taxista. Tais pessoas, dir-lhe-ão, podem ir directamente para o Diabo que as carregue, com cruzes e tudo. Aquilo que esses são, não há missas nem bentinhos que redimam.

Amén.

12.04.2006

51 – Desaparafusados.

A Vânia, soube-o hoje, já teve um parafuso a mais. Deu-se isto em tempos mais juvenis, quando ela era uma indefectível praticante do desporto radical que consiste em cair da moto. Um dia houve, em que ela se excedeu na prática, fracturando assim o rádio, que nunca mais voltou a tocar música de jeito. Resultou isso em ter de passar um bom número de meses com um parafuso no braço, coisa que entretanto já retirou. Nós, sem termos partido nada, temos pelo contrário um parafuso a menos.

Isto é verdade, tão verdade como começar a Vânia a contemplar ponderadamente os nossos disparates, e a interrogar-se, seriamente, sobre se terá escolhido a profissão adequada, e se aturar malucos será de facto a sua vocação. É que nós, para falar com franqueza, não batemos bem da bola.

Serve esta crónica para falar de malucos, e do seu papel na sociedade. Hoje, por exemplo, a Vânia discorria sobre o tamanho dos carapaus, e a sua relação com as sardinhas. Eu, é claro, aproveitei logo para lhe explicar como as latas de sardinhas são pescadas, e como os pescadores se afadigam a abri-las, e a limpar o peixe dos seus molhos de azeite ou de tomate, a fim de produzir a sardinha fresca. Ela acabou por se retirar, chocada, como se houvesse algum mal em acreditar em coisas como estas.

A verdade é esta, eu estou-me marimbando para a forma como a sardinha é pescada, como espero que qualquer pessoa esteja, a menos que essa pessoa seja, por um eventual acaso, um pescador de sardinhas. O modo como as latas de sardinhas se reproduzem não me interessa minimamente, embora me tenha esforçado por o explicar minuciosamente à Vânia. Só não quero, a única coisa que não desejo, é que me venham lembrar que as sardinhas são pescadas, monotonamente, numa rede de arrasto. A realidade não tem nada que vir estragar a melhor fantasia.

Vem isto a propósito de pessoas sérias, e da melhor forma de as fazer descontrair. Hoje disparatámos tanto, que até a Vânia, sisuda e prosaicamente realista, se começou a rir. Mas eles andam aí, os cinzentões. Podemos encontrá-los no trabalho, na rua, e até em blogs. Gente que vive a realidade, que vive na realidade, que vive da realidade, que vive para a realidade. Chatos, em suma.

No caso da Vânia, acontece que ela tem queda para o realismo, e o asfalto onde ela cai somos nós. Daí a sua constante tentativa para nos retirar dos delirantes lagos da fantasia, e nos reconduzir à aridez desértica do mundo real. Nós rimo-nos, mas é só porque não achamos graça.

Pode parecer, bem, idiota, o facto de nos comportarmos como um bando de idiotas, mas a alternativa é sinistra. Imagine-se, só por hipótese, um mundo de gente séria, muito consciente da sua própria importância, como se de facto tivesse alguma, postulando petreamente as suas ideias sérias. Como seria esse mundo?

Pois é, seria igualzinho a tantos ministérios, tantos conselhos de administração, tantas assembleias, onde todos dizem, com ar invariavelmente sério, as mais tonitruantes atoardas. Um bando de imbecis, ciclicamente validados pelo conceito que cada um faz do outro, em troca do conceito que o outro há-de fazer do um.

A mesa 19 é diferente. Nós somos forçados a viver no mundo real, mas tentamos escapar dele à hora do almoço. A realidade pode continuar a existir à nossa volta, nós estamos numa dimensão diferente. A Vânia pode abominar o nosso comportamento, mas de que lhe serve vir explicar-nos isso? Nós somos malucos! Dã…

Até vir o dia em que os figurões de pacotilha hão-de cair lá bem do alto da sua suposta importância, e se vai acabar por perceber quem é de facto maluco. Até lá, digam-me o que quiserem, mas digam-no com respeito. É que, não sei se sabem disto, eu sou Napoleão Bonaparte. Hoje, que amanhã logo se vê.

11.29.2006

50 – Lepidópteros e Paquidermes.

Há, na vida de toda a gente, um ponto em que se torna necessário dizer Basta. Eu, confesso-o, acabo de atingir o meu. Não é só pela razão de andar a acarinhar uma gripe que vem dando cabo de mim, como se alguém me tivesse dado recentemente um enxerto de porrada, e enfiado depois uma lixeira municipal de tamanho médio pelo meu nariz acima. Tudo isso, incluindo os arrepios, as tonturas e as náuseas, são sintomas perfeitamente suportáveis. Não, o que deu cabo de mim foi a rara intensidade destes últimos dias, a merecerem uma crónica que não será publicada, e outra, mais recente, que não será jamais escrita. Chega, estou esgotado, e vou parar de me meter em sarilhos.

Serve esta crónica para não falar de coisa nenhuma, ou, pelo menos, para falar destas o mínimo possível. Não sei, não estou bem seguro, até que ponto é que se pode encher uma página sem dizer nada, mas, se nos podemos fiar nos exemplos dos nossos políticos, não há-de ser muito difícil. É claro que, para começar, é necessário um tema, o qual pode ser, por exemplo, o estudo anatómico e comparativo dos elefantes e das borboletas. Julgo que se trata de um bom assunto, e um que tem sido lamentavelmente negligenciado, ao longo dos tempos.

Elefantes e borboletas: o que podemos então inferir sobre essas duas criaturas de Deus? Bom, temos, para começar, a sua gritante semelhança. É por demais sabido, em primeiro lugar, que ambos voam muito bem, com a possível excepção do elefante. Dispõem os dois de trombas, que utilizam para colher o pólen, ou então cocos, e têm em comum a cor cinzenta, menos, geralmente, a borboleta. De resto, são quadrúpedes, ou não, consoante a espécie, e duram apenas dois dias, indo depois morrer num cemitério secreto, no coração de África. Dos dentes dos elefantes faz-se o marfim, e, dos das borboletas, teclados de piano.

Em toda a vida dos elefantes, a parte mais bonita são as migrações. Nada há de mais belo do que contemplar, no Outono, os majestosos cardumes de paquidermes, voando em direcção ao Sul. Mesmo sem o desejarmos, os olhos enchem-se de lágrimas. Depois, bebemos outro brandy, e voltamos a contemplar a imponente matilha. O raio dos olhos voltam a encher-se de água, bebemos outro brandy, e por aí adiante. No dia seguinte, ainda ressacados, pegamos na espingarda, e vamos caçar elefantes.

Mas há diferenças, malgré tout, entre as duas espécies. Pessoas que estiveram já debaixo de um elefante, e depois debaixo de uma borboleta, confessam preferir de longe a segunda experiência. Segundo elas, as borboletas têm demasiada tendência para se meter onde não são chamadas, mas, em compensação, pesam muito menos no estômago.

A diferença fundamental, como é evidente, está no colorido. Toda a gente conhece aquelas belas asas, rendilhadas de todas as cores do arco-íris, matizadas de sublimes padrões policromos, que tão bem se distinguem da insípida monotonia das asas brancas das borboletas. Mas não devemos ser demasiadamente críticos, não é assim tão difícil imaginar um mundo em que os lepidópteros fossem coloridos, e todos os elefantes fossem cinzentos.

Outro factor importante, quando se estuda uma espécie, são os seus dejectos. Também aqui há uma significativa diferença, os dejectos da borboleta atacam a pintura dos carros, e os do elefante atacam o carro inteiro. Os dois sofrem ainda distinção, quando depositados no meio da via pública, mas isso é um assunto diferente, e matéria para nova crónica.

Há por último a considerar o valor alimentar de cada espécie, e não há, nesse particular, campo para dúvidas. Embora a borboleta forneça alimentação mais abundante, a carne do elefante é muito mais delicada. Alguns gastrónomos têm comparado a asa da borboleta com a ponta da orelha do elefante, mas a questão é ainda duvidosa. Quanto ao órgão sexual do paquiderme, a pata, quem a prova não quer outra coisa. De resto, também não vai precisar.

Fica assim demonstrado que, de todos os animais que esvoaçam mimosamente de flor em flor, o elefante é talvez o mais terno, e sem dúvida o mais útil. Numa próxima edição, discutiremos o Morcego e a Ténia.

49 – Incenso e Pataniscas.

Noto, com algum pesar, que as crónicas mais recentes têm descambado num deplorável materialismo, coisa que está bem distante da nossa verdadeira vocação. A mesa 19 é uma instituição de pendor místico, mais um estado de espírito do que um estar à mesa a almoçar. Não é por acaso, de resto, que o número da nossa mesa resulta da fusão transcendente dos doze mandamentos com os sete pecados mortais. Quando somos muitos, e nos vemos forçados a recorrer à mesa 17, estamos novamente em presença do mesmo número, somente subtraído dos apóstolos João e Mateus. A conclusão é cristalina, tenho de deixar de comer aqueles cogumelos esquisitos.

Já devia tê-los abandonado há muito tempo, aliás, mas não consigo resistir à forma colorida com que tornam o mundo um lugar mais divertido para se viver. De resto, provocam muito menos enjoo o que cheirar cola, e são mais baratos que o brandy. Dizem gurus entendidos que o amor puro e devotado de uma mulher pode amiúde produzir os mesmos resultados, mas elas não são tão fáceis de arranjar, e é muito mais difícil fumá-las.

Nesse dia memorável, em que o astro apolíneo se escondia por trás das carantonhas com que Plutão ia mimoseando o nosso globo, flutuámos todos para dentro do restaurante, e pairámos pesadamente sobre a mesa 19. Arrancando-nos com alguma dificuldade da contemplação do nosso umbigo, passámos a contemplar a ementa, que nos propunha grosseiros alimentos do corpo, como pataniscas e leitão. Resignando-nos, com um suspiro, encomendámos pataniscas para todos, e leitão para todos, também.

Foi com a alma dorida que a Marta e a Vânia nos começaram a atestar a mesa de travessas. Elas bem viam como aquilo ofendia o nosso natural ascetismo, a pontos de sermos tomados pelo furioso desejo de destruir toda aquela comida, coisa que eventualmente fizemos. Quão melhor quadraria à pureza dos nossos espíritos um severo jejum, de pão seco e pura água. Em vez disso, castigámos a carne com inúmeros jarros de vinho, com que empurrámos o porco impuro, os fritos de bacalhau, gotejantes, todo aquele sofrimento da alma, que tão bem aproveitou à nossa salvação.

Brincámos ainda com a ideia de encomendar sobremesas, mas, vendo-nos a estalar com a dupla refeição, tivemos por bem dar o corpo por devidamente castigado, e partimos directamente para o purificador ritual do café. Esse sacramento, o mais santo do nosso severamente ascético cerimonial, faz copioso uso de certos óleos sagrados, que a nossa religião denomina ainda pelos antigos nomes célticos, como Croft, Jameson, e Eristof. Deles nos ungimos devotamente, e retornámos por fim aos nossos deveres, tardios mas purificados.

No dia seguinte não havia nada de jeito, e eu tive de comer arroz de pato. Ora digam-me lá, que tabernáculo é este, que propõe, para as suas celebrações, arroz de pato? O arroz, ainda vá que não vá, oferenda a recordar as privações que o povo de Moisés sofreu, no seu êxodo das terras do Egipto. Agora o pato, ave profana, espécie de galinhola dos lagos, bicho ainda por cima estúpido, mais do que lhe pedia a triste condição de palmípede? Bem sei que a dita arrozada vinha benzida com rodelas de chouriço e troços de bacon, mas não deixou de ser uma punhalada espiritual, a mortificar o nosso karma.

Temos de tomar uma atitude. Na próxima semana, sugiro que façamos a nossa exigência, refeições diárias de cordeiro de leite, morto e preparado segundo o ritual kosher. Galo degolado ao nascer do sol, com uma faca de gume de prata, e enfeitado com paus de incenso. Isso, ou então pataniscas. Ou leitão.

A Marta é outro problema. Continua a insistir em vestir-se à moda ocidental, em vez de usar as reduzidas vestes ornamentais das sacerdotisas de Baco. Não sei porquê, mas acho que nesse particular não nos safamos, não com ela, pelo menos. A culpa não é dela, é apenas mais um sintoma do ateísmo que vai pelo mundo. Não é fácil ser santo, nestes tempos, mas nós fazemos o nosso melhor por isso.

11.23.2006

48 – A outra empregada.

Há outra empregada, além da Vânia. É muito diferente dela, mas é também uma miúda bonita. Honi soit qui mal y pense, que, quando digo miúda, refiro-me a uma mocetona de vinte e três primaveras, senão mais. Menina casada, de resto, e senhora do meu maior respeito, só que para mim é uma miúda. Mais, é uma miúda bonita. Quis dizer-lhe isso mesmo, um destes dias, mas a minha condição de quadragenário envergonhou-me. Encomendei então o recado à Vânia, mas a minha condição de quadragenário envergonhou-a a ela, também. A outra lá continuou, uma miúda bonita, e alheada de o ser.

Serve esta crónica para falar da outra empregada, e de tudo o que lhe deve a mesa 19. Força-nos isso a falar também da Vânia, e das subtis e diversas formas em que ela é diferente da outra empregada. Não é de resto comum mencionarmos a outra, mas ela é uma peça fundamental do nosso estabelecimento: se a Vânia é o espírito e a consciência da mesa 19, a outra empregada é a sua alma travessa. Ninguém percebe os nossos disparates como ela, e poucas seriam capazes de os imitar, da forma como ela os imita.

Não é habitual sermos servidos por ela, embora seja sempre um prazer, de tal forma ela mostra prazer na mais pequena solicitação. Confesso que cheguei mesmo, um dia, a convidá-la para uma sardinhada, coisa que ela declinou, e talvez tenha sido melhor assim. É que ela, sabem, é uma miúda muito bonita.

É neste ponto que entra em acção o Evangelho segundo Santa Vânia, onde taxativamente se diz, Não cobiçarás ninguém que não tenha idade para ser a minha avó, a menos que sejas quarenta anos mais novo que o meu avô. Estou lixado, o crivo exclui-me claramente, e seria necessária muita imaginação para fazer da Marta avó da Vânia. Ora bolas, lá disse o nome.

O que fazer disto tudo? Confesso que não sei. A Vânia é indispensável à mesa 19, e há-de ser sempre um coelhinho fofo e branco, e um coelhinho bem giro, por sinal. E a Marta? Bem, a Marta é uma miúda muito bonita. Mas acho que já disse isto, não disse?

11.22.2006

47 – Feios, porcos e maus.

Conta-nos o genial Homero, na sua épica Odisseia, os tratos por que passou o heróico Ulisses, desde que se fez de vela das suas praias brancas de Ítaca, até que a elas tornou a aportar, ao encontro dos braços amantíssimos da inefável Penélope, que jamais desfaleceu de o aguardar. Nessas páginas se diz como o grande Odisseus, nome que também lhe davam, abicou um dia à ilha da feiticeira Circe, a qual, por mor de melhor reter no seu convívio o herói, transformou em leitões os seus companheiros. Está visto que Odisseus, ou Ulisses, se preferirem, não teve dúvidas em tirar-se do trabalho, e Circe ficou a ver navios.

Homero, para além de ser cego, acabou também por morrer, tendo escrito muito pouca coisa depois disso. E é por essa razão que só agora, transcorridos vários milénios, cabe a estas crónicas a honra de desvendar o que sucedeu, em última análise, a todos aqueles bacorinhos da Odisseia. Pois bem, folgo em informar que se encontram todos de boa saúde, e almoçam diariamente na mesa 19.

Serve esta crónica para falar de porcos, bácoros, cerdos, tós, javardos, em suma. Vem isto a propósito da recepção que tivemos hoje, logo ao entrar no restaurante. Fomos prontamente informados, não da ementa do dia, mas sim da de amanhã, que inclui pataniscas de bacalhau e, note-se, leitão. A informação foi prestada de modo cuidadosamente descuidado, e tudo nela parecia perguntar, Vão comer as pataniscas, ou preferem canibalizar um dos vossos semelhantes?

Eu julgo já ter expressado, algures nestas crónicas, a minha opinião de que nós somos vistos, naquele restaurante, como um bando de leitõezinhos, e não dos mais bem-educados. Com a maior boa-vontade, confesso que não vejo como o facto de fazermos muito barulho e arrotarmos ruidosamente (certo, isso sou mais eu), falarmos e rirmos alto demais (ups, eu, de novo), emporcalharmos a mesa, e espalharmos por todo o lado bolinhas de papel, nos qualifica como cevados. Mas enfim, vox populi, vox dei, e resta-nos aceitar o julgamento, o que fazemos sob protesto.

Porcos, e, porque não dizê-lo, feios (não eu, mas é o caso da maioria dos outros). Não contentes com isso, somos também maus. Muito maus, na realidade. Não quero com isto dizer que eu, por exemplo, tenha o hábito de fazer churrascos de gatos vivos, ou se costume o Rui vestir de menino Jesus, para se ir plantar à porta dos infantários, e dar pontapés às criancinhas que incautas se aproximem. Nada, somos todos boas pessoas, amigos dos pobres e dos petizes, cumpridores da lei, e com os impostos mais ou menos em dia. Somos, apesar disso, maus, mesmo muito maus.

Sofremos todos, para começar, de um grave problema de desobediência civil. Em cada cadeira da mesa 19, senta-se um leitão refractário aos Poderes Que Devem Ser Obedecidos. Uns questionam a estrutura hierárquica, outros o sistema corporativo, outros ainda, mais genericamente, essa vaga entidade que responde pelo nome de, Esta merda toda, mas não há ali bichos de boca aberta, no fito de engolir qualquer linha que venha com anzol e chumbada. Não há bons cidadãos na mesa 19, somos todos maus. Feios, porcos e maus.

A Vânia já percebeu isso, mas está em negação. Não compreende, por exemplo, que alguém seja tão incivilizado que, em vez de aceitar uma bebida com um agradecido curvar de espinha, peça arrogantemente outra. Mas mesmo ela já começou a entender que a coisa dá para os dois lados, e que nós acabamos por dar mais do que recebemos, e quando não damos, é tudo o mesmo, pois ninguém está a fazer contas a tal coisa. Um amigo, entre nós, não deixa de o ser, e se o vemos cuspir na nossa amizade, é só que o dia lhe está a correr mal, e quem é que se vai zangar por tão pouco?

São muito bonitas aquelas comunidades dos programas infantis, tipo “ursinhos carinhosos”, em que todos se derretem uns com os outros. Aquilo, todavia, vem tudo abaixo, mal soa o primeiro, Porra, dito a sério. Entre nós, se alguém disser, Tu, boi, paga-me o almoço, o boi em causa percebe que o amigo não trouxe dinheiro, e paga-lhe o almoço. E ninguém se aborrece. Que gaita, somos ou não somos amigos?

O Constâncio, por exemplo, anda há uns tempos sorumbático, e recusa-se a ler as crónicas. Quantos almoços passámos já, sem que se ouça a voz dele. Alguém se chateia com isso? Nada, limitamo-nos a mandar-lhe umas bocas feias, porcas e más, com as quais ele também não se aborrece. Que diabo, somos amigos!

Nós? Nós somos aqueles que partiram de Ítaca, e a quem a bruxa Circe transformou em leitões, e de quem fez feios, porcos e maus. Mas só acredita em bruxas quem quer, e ninguém tem de se ver pelos olhos dos outros. Feios seremos, sem dúvida. Agora porcos e maus, isso são os outros. E o leitor sabe de quem eu falo. Se não souber, é bem provável que seja de si.

11.20.2006

46 – Vinde a mim as criancinhas.

Hoje, confesso-o abertamente, alberguei no meu coração um sentimento mesquinho. Por longos momentos, admito-o, entreguei-me sem escrúpulos à inveja. E não de pequena monta, há que dizê-lo, pois dei por mim a invejar intensamente os grandes poetas da nossa língua, os Camões, os Bocages, todos os outros. Pior ainda, não lhes invejei – ai de mim – o talento, mas tão-somente a impunidade.

Deu-se tudo isto por se ter sentado, numa mesa perto da nossa, uma jovem encantadora. Tão jovem era, e tão encantadora, que não resisti a indagar, junto da Vânia, se sabia quem era aquela sílfide, e se lhe conhecia o nome e a história, os principais feitos e sucessos. Horror e anátema, cai-me a Vânia em cima, metaforicamente, é bom de ver, e com nojo e asco me vitupera, que eu era um pervertido, pois não tinha a rapariga mais de dezanove anos, quase uma criança, portanto. Não estou bem seguro, mas julgo que me chegou a cuspir na cara.

Timorato e desorientado, encolhi-me covardemente, e logo retirei o piropo a que impensadamente dera voz, não viesse a polícia judiciária pela minha pessoa, e fosse eu acabar num desses temerosos calabouços, onde pedófilos confessos se apinham, aguardando carne jovem. Quem sabe, mesmo, se algum deles não se deixava tentar pela minha silhueta rotunda, e administrativamente me conferia cartão-jovem. Nada, o melhor é não arriscar.

Fiquei contudo a remoer, que raio têm os nossos poetas, que eu não tenho? Camões cantou desabridamente os encantos das tágides, e todos nós vimos já estátuas das ditas, ao colo do malandro do zarolho. Não têm quarenta e nove anos, pois não? Nem pouco mais ou menos, que o Luís Vaz tinha olho, ainda que fosse só um, e nenhuma das suas ninfas do Tejo estava aprazada para completar os dezanove anos antes da próxima passagem do cometa Halley. Já não falemos da cativa que o tinha cativo, e que tinha mas era idade para ser filha dele. Mas digam-me lá, espetaram com ele na choça? Qual quê, dedicaram-lhe mas foi o dia de Portugal.

Enquanto ao Bocage, estamos conversados. Há mais mulheres nos seus poemas do que peixes no mar, e a única coisa que não as vemos fazer é tomar chá. A juvenil infância é patente em muito soneto, e será que os beleguins o prenderam? Bom, por acaso prenderam mesmo, mas foi noutros tempos, quando se prendiam as pessoas apenas por coisas que elas de facto faziam, e não por aquilo que diziam, ou se dizia delas. De resto, o talento dele, nos nossos dias, desculparia muita coisa, e ainda éramos capazes de o ver candidato ao prémio Pessoa, e a aparecer na televisão em horário nobre. E eu? Eu sou um pedófilo, digno apenas de ser esborrachado, e vá-se lá perceber o que faço ainda à solta. Ah, Vânia, Vânia, que ainda hás-de ser a minha perdição.

Batatas, a miúda era gira, e tinha 19 anos, tão certo como sermos nós a mesa 19, e não a 14, por exemplo. As unhas eram vermelho-morango, a cara era fresca e bem-disposta, no traje moderna, sem ser escandalosa. Tinha 19 anos, caramba. Chamasse-lhe eu uma tágide ou uma nereide, e a coisa marchava, mas caí na asneira de lhe chamar uma miúda gira. A expressão caiu mal, porque eu não sou nem uma coisa nem outra.

É assim mesmo. Nós, os quarentões, somos proibidos até de apreciar jovens, sob pena de sermos considerados uns pervertidos. Em contrapartida, qualquer puto imberbe e boçal, género morangos “sou uma besta” com açúcar, pode a seu bel-prazer fazer à dita menina as mais inconvenientes propostas. Ainda para mais, correndo ela o risco, se cair na asneira de as aceitar, de ficar mal servida. Que digo eu, risco? É quase uma certeza, que estes putos, mesmo os que ainda não deram em maricas, primam por não distinguir o cu das calças, por mais que estas, à força de cair, vão mostrando aquele. Nós é que, para mal dos nossos pecados, nem do alto da nossa velhice podemos apreciar a juventude.

É assim que as coisas estão, os velhos metem nojo, e devem abster-se sequer de abrir a boca, excepto para falar das suas coisas de velhos. Desconfio que mesmo Jesus Cristo, se de novo viesse à terra, e se lembrasse de repetir aquela laracha do, “vinde a mim as criancinhas”, não de livrava de três anos de prisão preventiva, mais uns quantos de julgamento, mais apelos, e sei lá que mais. Enfim, do mal, o menos, não iam conseguir crucificá-lo antes dos setenta.

A mim, e pelo andar da carruagem, ainda são capazes de me crucificar mais cedo. E será muito bem-feito, dirá discretamente a Vânia.

11.17.2006

45 – Sobre blogs, jornais, e trinta-e-um de boca.

Nesses arredados tempos da minha longínqua juventude, em que eu, na ânsia infrene e desmedida de me fazer passar por uma pessoa moderadamente culta, contribuí com o meu frequente óbolo para a caixa do bar de uma destacada faculdade, onde cheguei mesmo a frequentar uma ou outra aula, tínhamos também umas crónicas.

O molde era em tudo semelhante ao destas páginas. Um ou dois escribas, no seu denodado esforço para encontrarem matéria extra-curricular com que matar o tempo, começaram a manuscrever uma história corrida, cujo enredo, se ainda recordo, girava insistentemente em torno do delicioso corpo de uma nossa condiscípula, e das suas improváveis aventuras sexuais com magotes de marinheiros. As folhas caligrafadas iam surgindo rotineiramente, e circulavam pelo bar, entre uma cerveja e a balda a mais uma aula.

A aquisição de um grau do ensino superior é uma nobre tarefa, que em devida hora julguei excessiva para sangue tão plebeu como o que ainda hoje me corre nas veias. Deixei, pois, o empreendimento a cargo de mais brasonadas pessoas, e lancei-me na vida profissional, inculto como antes. Nunca, até começar a escrever estas crónicas, me voltei a lembrar daquelas.

Quando a recordação por fim me acudiu, foi com aquela condescendência superior que em regra votamos às coisas do passado, e aos seus rituais obsoletos. Lembro-me de pensar, Vejam só, textos manuscritos, e circulados em folha única, como se Gutemberg jamais tivesse vivido à face da terra, e nela inventado a imprensa. Poucos anos depois, vulgarizavam-se computadores e impressoras, mas a Internet era ainda um sonho distante.

Mesmo depois de se concretizar o sonho, e de toda a gente navegar livremente nas auto-estradas da informação, não estava ainda ao alcance de qualquer um a possibilidade de publicar informações on-line. Só muito mais tarde se viria a dar essa democratização, com o advento dos blogs.

De forma que as crónicas da mesa 19, a anos-luz dos incipientes papiros da faculdade, começaram a ser publicadas num blog. Tudo correu bem por uns tempos, mas logo descobri que nem todos os leitores conseguiam manter o passo. Se alguns liam a crónica assim que ela era publicada, outros só dias depois lhe votavam uma atenção de que até aí não haviam disposto. Isso fez com que, em períodos mais férteis do escriba, fossem publicadas crónicas sem que a maioria do público tivesse já lido a anterior. Ficavam assim dois textos por ler, coisa mais difícil do que ler apenas um, e a tendência era protelar, até que viesse terceiro texto dificultar ainda mais a tarefa. E, assim por diante.

A única ocasião em que todos, definitivamente, temos tempo para este género de lazer, é durante o almoço. Não está, contudo, a mesa 19 dotada de acesso à Internet, pelo menos por enquanto. Foi por isso que eu tive um dia uma ideia brilhante, imprimir a crónica recém-escrita, e fazê-la circular pela mesa. O costume pegou, e, hoje em dia, ninguém mais acede ao blog. As crónicas são servidas, em exemplar único, como antepasto ou sobremesa.

Completa-se assim um ciclo. Um processo que, no seu início, se ria, jactante no alto da sua tecnologia superior, dos medievais ritos do pergaminho circulado de mão em mão, vem justamente tombar nos mesmos vícios, só se distinguindo do antigamente por ser impresso. Olha que grande coisa, impresso, isso já há quinhentos anos se fazia! Em tudo o resto, plus ça change, plus c’est la même chose. O que mudou, então?

Não é caso inédito, este fechar de um ciclo, mas é, em todo o caso, merecedor da nossa atenção. Veja-se, por exemplo, quanta gente migra da província para a grande urbe, monta por lá a sua vida citadina, e não descansa depois enquanto não encontra uma aldeia remota, seja sua ou alheia, onde passar as férias que consegue ter. Ou então, basta ver como evoluiu o requinte na arte restaurativa, o proliferar de restaurantes limpos e assepticamente modernos, para hoje em dia toda a gente procurar uma tasca bem típica, das de antigamente, que é onde se come bem.

Cada era tem a sua própria maldição, que vem, via de regra, matreiramente disfarçada de benesse. O primeiro milénio assistiu aos horrores das cruzadas, guerra estúpida onde tanta gente válida deixou a vida, e o segundo milénio encerra sob a égide do computador, da Internet, das comunicações globais e instantâneas. Tudo se clica, tudo se tecla, nada realmente se faz.

A juventude vai sofrer com isto. Não há SMS que substitua um olhar, ou MSN que faça as vezes de um beijo. Talvez os nossos filhos, já hoje, comentem em voz temerosa, Sabes que os meus pais, na primeira vez que se falaram, já se conheciam? Pois é, não sei onde isto vai parar. As crónicas, pelo sim, pelo não, vão continuar a circular em papel. Nem que seja por amor dos velhos tempos, aqueles que não voltam mais.

11.16.2006

44 – Memórias da mesa 19.

Disse hoje um ilustre comensal, por outras palavras que não estas, mas sensivelmente com o mesmo sentido, “Quando não há nada de novo para escrever, escrevem-se memórias”. Eu resolvi pegar-lhe na palavra, não porque não haja já nada de novo para escrever – há sempre –, mas porque, com franqueza, tive preguiça de pensar noutro tema.

Serve esta crónica, como o título sobejamente indica, para falar das memórias da mesa 19. O título, honra lhe seja feita, tem o seu quê de pretensioso, e estive mesmo para o fazer pior, qualquer coisa como, “Les memoirs de la table diz-neuf”. Ou então, puxando ao chique de uma série da BBC, “Reviver o passado na mesa 19”. Sofreei a tempo o impulso arrebicado, Deo gratia, e ative-me às lusitanas “Memórias”, título ilustrativo quantum satis.

Ora bem, achado que está o título, não há senão que lhe escrever por baixo uma crónica, se possível de teor condizente com o que as letras gordas anunciam. E é aqui que a proverbial porca torce o seu metafórico rabo. Pois, vejamos bem, que sei eu dessas memórias, desses tempos de antanho, em que a mesa 19 soltava os primeiros vagidos infantis, entre os panos que então lhe serviam de cueiros, e que mais tarde a viriam a atoalhar? Em já longínqua crónica admiti e confessei, sem rebuço, mais não ser que o mais recente dos arrivistas, naquela histórica e vetusta mesa. Toda uma legenda por trás de mim se desenrola, e dessa legenda eu quase tudo desconheço. O que fazer, então?

A solução honesta, diriam alguns, seria desistir, de uma vez e por todas, de escrever tal crónica. Pois sim, tudo isso é muito bonito, mas digam-me cá, por que raio é que eu faria semelhante coisa? Bem sei que o argumento, tal como é apresentado, parece convincente e persuasivo, mas o facto é que carece do menor fundamento. Desde quando é que, nesta terra, é preciso entender seja o que for sobre um assunto, para dele se poder falar à vontade?

E, de resto, não é como se eu desconhecesse por inteiro a mesa 19, muito pelo contrário. Quem, senão eu, que ao longo de mais de um ano acompanhei a pari passu as gestas e vicissitudes dessa meritória agremiação, seria mais talhado para aqui falar dela, seja na sua vertente passada, como presente ou futura? De resto, e seja como for, a integral verdade dos factos não foi nunca um dos principais ingredientes destas crónicas. Seria até caso de, plagiando o bom do Eça, adoptar um novo lema: “Sobre o anoréctico esqueleto da verdade, o pesado cobertor da mais desenfreada fantasia”.

Vamos então às tais memórias, e vamos a elas como Santiago foi aos mouros. Começaremos por dizer que, pese embora o nosso orgulho e amor-próprio, já antes de nós se serviam almoços na mesa 19. Foram tempos bastardos, esses, de que outras crónicas se farão trombeta, que não estas. Naquelas nobres cadeiras, tronos que por modéstia se disfarçam com a dura simplicidade do pinho, anónimos e pouco meritórios cus tomaram já assento, ouvindo com bochechuda paciência os seus donos, que gastavam o tempo do repasto em discutir merdas sem interesse.

Já por lá navegavam, todavia, os pais fundadores do nosso grupo. Se assestarmos o telescópio da história à memorável sala, claramente distinguiremos esse Carlos, por cognome O ancião, que, do convés de mesas estrategicamente limítrofes, lança olhares, prenhes de conquistadora cobiça, sobre a mesa que viria a ser o nosso território.

Veio depois a fundação, épicas gestas onde pelejaram e se distinguiram vultos maiores da nossa história, como seja o caso do Paulo, o homem-santola. Até uma mulher por lá andou, acho que já aqui se falou nisso, e depois vieram os arrivistas. E, com eles, deu-se o advento das crónicas, e a mesa ganhou memória escrita.

As crónicas, em si, não têm qualquer importância. Vale tanto escrever uma delas, como dizer que D. Afonso Henriques fundou Portugal. Não é por o dizermos que ele o fundou, e o valor da coisa está no acto, não nos papéis que mais tarde disseram o evento. Mas não é garantido que Portugal ficasse de facto fundado, se não viesse depois alguém escrevê-lo. O valor das crónicas, se algum valor têm, é apenas esse, confirmar aquilo que, de qualquer modo, já antes delas existia.

E então, quanto às memórias? Batatas, que se lixem as memórias, que a vida da mesa 19 é para a frente, e não para trás. O passado já não existe, o presente é nosso, e, quanto ao futuro, cá estaremos para dar conta dele, em oportuna e atempada crónica.

11.15.2006

43 – O gato das botas.

Constato, com contrição e algum pesar, que as crónicas mais recentes têm sobretudo ferido uma nota sisuda e filosófica, em detrimento daquele tom folgazão e divertido que caracterizou uma certa fase destes escritos. Ora bem, nem que seja apenas para desanuviar, proponho-me hoje, por excepção, tanger a imaginativa corda da fábula, e dar descanso aos pesados acordes da vida real.

Façamos então de conta que, por um primaveril pasto, retouçavam dois porquinhos, ou então três… sei lá, digamos que eram três. Para fugirem ao tigre mau, resolveram contratar um pato-bravo para lhes construir umas casas. O primeiro suíno cortou-se nos cobres, e chupou com uma casa de palha. O leão malvado pôs-se para ali a bufar, e a choupana deu com os burrinhos na água.

O segundo cerdo esticou-se um pouco mais, e teve direito a uma casota de madeira. Não que lhe tenha servido de muito, pois, logo ao primeiro resfolego da onça má, o casebre aluiu vergonhosamente.

O terceiro javardo armou-se em fino, e encomendou uma obra catita, toda em tijolo e betão. Veio o tubarão mau, e soprou, soprou, mas o estaminé aguentou-se à jarda. Isso deixou o cevado muito contente, até perceber que estava agarrado com os dois manos, que se tinham mudado para viver com ele.

Foi por essa altura que os pais do pequeno polegar decidiram que o puto, enfezado como era, comia mais do que aquilo que valia. Daí a porem-no com dono não se passou um credo, e logo o lenhador, que os pais irresponsáveis destas histórias são sempre lenhadores, ou gigantes, ou lenhadores gigantes, mas o lenhador, dizíamos, resolveu levar o catraio a perder-se na floresta. A coisa toda não lembra a um fundamentalista muçulmano, mas lembrou felizmente ao petiz, que lançou mão daquele truque que todos conhecemos, pedrinhas no chão, blá, blá, blá, blá. Conseguiu assim voltar para o pai, que ficou pior que estragado.

O lenhador era burro, mas teimoso. De novo levou o fedelho para a floresta, e – sendo o miúdo ainda mais burro do que ele – conseguiu levá-lo a perder-se novamente. É-se levado a pensar, com franqueza, se estas histórias não poderiam aproveitar bastante, caso aparecesse por lá um cérebro perdido, a oferecer os seus préstimos.

A besta do gaiato voltou a fazer o golpe das pedrinhas, mas o lenhador, num raro lampejo de inteligência, desviou a pista, de forma a afastá-la de casa. Terá sido por acaso ou por deliberação que a nova pista passou a conduzir à casa dos três porquinhos? O que interessa é que os suínos abriram a porta, os palermas, e isso foi o início de um belo churrasco, para o qual o pequeno polegar convidou os pais, que choraram muito, e foi bem feito.

A única relação entre esta crónica e a mesa 19 está, evidentemente, no seu título. A questão é a seguinte, nós nunca ali comemos coelho, mas fica a dúvida: se o comêssemos, traria na travessa bocados de botas, das de sete léguas?

11.14.2006

42 - Delenda Cartago!

É quase uma constante da vida, a gente passa meses a ver passar mais do mesmo, e quando tira quatro míseros diazitos de férias, tudo acontece. O que realmente aconteceu, neste caso, foi uma coisa trivial e portentosa, simples na sua imensa complexidade. Trata-se de nada menos do que isto, o advento da censura à mesa 19.

Serve esta crónica para falar da ascensão e queda do império da mesa 19. Bem, não tanto da ascensão, que tem sido amplamente descrita nestas páginas, mas sobretudo da queda, novel ocorrência, a fugir com o gordo rabo à seringa da nossa vivência quotidiana. Nós, que fomos a inveja de Salomão, encarnações materiais do cântico dos cânticos, mais poderosos do que Aníbal, mais sábios que Buda, somos de súbito alvo de censuras baixas e comezinhas. Nós, que destronámos imperadores, somos acusados – pasme-se – de atirar bolinhas de papel para cima do aparelho de ar condicionado! Ora digam-me, dá para acreditar nisto?

A baixa vileza da acusação constitui um insulto que nada, nem sequer o facto de ser inteiramente verdadeira, pode apagar. Acaso Nero se preocupou com a justiça, sequer com a verdade, quando fez de Roma a sua pira de glória? Tiveram outros Césares mais contemplações, quando se tratou de fazer frente ao fenício hostil? Nada, Catão, o censor do império, ergueu a fronte altiva, e em clara voz de comando ordenou a destruição de Cartago, capital inimiga. Delenda Cartago, determinou, e serenamente aguardou a resposta inevitável, Cartago delenda est.

A mesa 19 é um ideal, uma abstracção, uma nuvem sonhada por um banquete de filósofos. É por demais claro que abstracções e nuvens não atiram papelinhos para cima dos aparelhos de ar condicionado, pelo que a má acção não pode ter sido praticada senão pelos seus sacerdotes, as nossas pessoas carnais (aqui entre nós, foi o Carlos, mas adiante). Mas, e aí é que bate o ponto, todas as religiões declaram que os seus sacerdotes são sagrados, tão imunes à profanação como o próprio Deus que servem, e nós, que oficiamos o culto da mesa 19, não deveríamos ser excepção.

Mas as coisas são como são, e nós estamos debaixo de fogo, vítimas dos golpes das potências profanas que visam a destruição do nosso império. Os seus golpes são baixos, querendo levar a derisão aos nossos rituais mais sagrados, como os cânticos comuns – tão vilipendiados no passado – ou o sagrado rito das bolinhas de papel. Contra eles, só nos podemos deixar esmagar, ou então erguer bem alto a cabeça, e gritar, Delenda Cartago!

Que Cartago é essa, que urge destruir? Na infeliz ausência material da antiga capital fenícia, há que identificar outro alvo. Dentro do espírito científico, rigoroso e exacto destas crónicas, decidimos, após cuidadosa deliberação, tomar como referência exactamente aquilo que, no momento, me passasse pela cabeça. Desse ponto de vista, quem são os nossos cartagineses?

Pois bem, eles são uma multidão. Mais precisamente, são todas aquelas pessoas que não voam, todos os que sobrevivem em vez de viver, que ponderam quando deveriam rir, que riem quando poderiam exultar, que não sabem o que é sonhar, nem compreendem a ímpar beatitude de uma bolinha de papel, lançada com oportunidade sobre o topo de um ar condicionado. São os que concordam, sorumbáticos, quando alguém diz que a vida é um assunto sério, e, de tanto o dizerem, vão começando a acreditar que é mesmo verdade. É contra eles que eu lanço as minhas centúrias, é aos seus ouvidos que brado, Delenda Cartago!

Mas está escrito que Cartago não será destruída, e Roma terá de cair. Assim seja, cumpra-se então a inevitabilidade histórica, mas consintam-me ao menos um prazer, que nos seja permitido cair em chamas, como a Roma imperial de Nero. Nem que sejam apenas as chamas do aparelho de ar condicionado, finalmente incinerado por todas as bolinhas de papel que sobre si acumula. Que diabo, não custa assim tanto comprarem outro. Outro restaurante, quero eu dizer…

11.10.2006

41 – 19 não é um número redondo.

Já tem acontecido, por mais de uma vez, serem os portugueses o objecto destas crónicas. Não é, de resto, coisa de espantar, sendo a mesa 19 constituída, mais do que maioritariamente, por portugueses, conforme atesta a total ausência de estrangeiros entre nós. O ponto que pretendemos focar hoje é o seguinte, os portugueses não batem bem da bola.

Serve esta crónica para falar, não dos portugueses, mas sim da bola, desse esferóide que, de modo tão completo, absorve a atenção de tantos povos, os lusitanos incluídos. Ele é o futebol, certamente, mas igualmente o ténis, o snooker, o bowling, todas as práticas onde arbitrariamente se pontua ao sabor dos movimentos mais ou menos erráticos de uma esfera de dimensões pré-determinadas, manipulada de acordo com regras sabidas, que são aquelas só por não serem outras, ou mesmo umas quaisquer, que também serviam bem. O facto é este, toda esta gente vive da bola, seja em menor ou maior grau.

Sejamos por um instante moscas, e pousemos discretamente, convém ser discretamente, para fugir da fatal palmada, mas dizia eu, pousemos discretamente na borda de uma chávena, uma qualquer, das muitas que atravancam a mesa de um restaurante, em fim de refeição, e apuremos o ouvido: pois aposto, singelo contra dobrado, que acabaremos a ouvir uma qualquer treta, seja ela qual for, mas por certo relacionada com uma bola, e o mais provável é ser bola de futebol. Porquê esta obsessão, santo Deus?

Vem isto a propósito de uma idiossincrasia da mesa 19, mais uma, mas esta de particular relevo para o nosso assunto: a nossa mesa não se interessa particularmente por futebol, e muito menos por outros desportos esféricos, como os acima mencionados. É caso para dizer que, se os portugueses, de um modo geral, não batem bem da bola, a mesa 19, no seu todo, não bate bem com a bola. Aliás, para ser mais exacto, não bate bem nem mal, não bate mesmo nada.

Sim, confesso que há um ou outro adepto por lá, mas são andorinhas que não chegam para fazer o Verão, como não o faz um dia só. As conversas da bola que se ouvem por lá são marginais e raras, e os nossos tópicos são, com frequência, mais bicudos que esféricos. Não se pode, de facto, afirmar que nós não batemos bem da bola. É esse, de resto, o nosso problema.

O futebol é a nossa muleta nacional, tal como o estado do tempo é a muleta dos ingleses. É sabido que, se o tempo não mudasse de vez em quando, a Grã-bretanha seria uma nação silenciosa, por falta de assunto. Pois bem, não seria mais calada do que Portugal, caso alguém resolvesse, por despótico decreto, acabar com as conversas da bola. Nem é por acaso que se chama “a bola”, o ser futebol é mera casualidade, o importante é ter uma bola, qualquer coisa redonda. Mas, nem todas as bolas servem…

Ele há elitismos e populismos, nesta questão da bola. Qualquer pessoa pode iniciar uma conversa, servindo-se dos resultados da última jornada de futebol, mas há que estudar os circunstantes, antes de trazer à liça um resultado de andebol, e o snooker é matéria restrita à televisão por cabo. O ténis é um desporto de elites, e não vale sequer a pena falar no jogo do berlinde. Ou seja, há bolas e bolas.

Nas sociedades industrializadas, por exemplo, a coisa encontra-se perfeitamente estratificada. Os operários, gente rude e inculta, praticam habitualmente o básquete. Os escalões inferiores de técnicos são adeptos do bowling, enquanto os superiores preferem o futebol. Os quadros médios apreciam o andebol, e os de topo jogam snooker. Os administradores, pelo seu lado, não dispensam uma partida de golfe. Ou seja, quanto mais se sobe na hierarquia, mais pequenas vão ficando as bolas…

E quanto mais pequenas são as bolas, maior se torna a necessidade de falar delas. Não é esse o caso da mesa 19, onde as bolas são de bom tamanho, mas não se fala da bola. É por isso que aí ocorrem, tantas vezes, silêncios profundos, o silêncio de quem se cala por não ter, de momento, nada a dizer. Mas quando se fala ali, vale a pena ouvir o que é dito. É que não diz, regra geral, respeito a uma bola.

11.03.2006

40 – O Homem-Santola.

Imagine o amável leitor que toma nas suas mãos uma vulgar pedra da calçada, e a lança contra uma multidão escolhida ao acaso. Com toda a probabilidade, a pedra irá acertar em alguém que nunca ouviu falar em Edward Wood, nem está sequer muito preocupado com o assunto, visto toda a sua atenção, nesse momento, se concentrar na tarefa de lhe partir o focinho, para aprender a não apedrejar pessoas que nunca lhe fizeram mal algum.

Se o segundo facto é facilmente compreensível, mais difícil é entender o primeiro, o desconhecimento generalizado desse brilhante cineasta que foi Edward D. Wood. Sei que esta palavra, brilhante, poderá causar alguns engasgos a qualquer pessoa minimamente familiarizada com a reputação de Ed Wood, geralmente considerado o pior realizador que alguma vez pisou os estúdios de Hollywood. Eu, todavia, insisto no adjectivo, por razões que não tardarei a explicar.

Wood dirigiu diversas histórias de ficção científica, todas de baixo orçamento, todas com maus guiões, e indescritivelmente mal feitas, todas elas. Famoso, entre todas, é o delicioso “Plan 9 from Outer Space”, de que falaremos mais à frente.

É claro que a falta de meios ajuda a explicar por que razão o disco voador se parece com uma tampa de panela, baloiçando, ao sabor das correntes de ar, na ponta de uma guita que se deixa entrever. Não basta, contudo, para justificar que o piloto do avião, ao avistar a citada tampa de panela, descreva pela rádio que está a ver um objecto grande e alongado, da forma de um charuto. Ou que o funeral decorra durante a noite, enquanto fora do cemitério é dia claro. Ou que as diversas cenas de uma perseguição alternem entre dia e noite, ao sabor do que conveio filmar. O argumento financeiro não basta, não é preciso dinheiro para se evitarem disparates destes, caramba.

Os títulos, só por si, constituem uma anedota à parte. De entre uma série de obras, todas com nomes imbuídos de uma naiveté espantosamente imberbe, destaca-se o mencionado “Plan 9 from Outer Space”. Terá sido com base neste, considerado o pior filme de sempre, que Stanley Sheff concebeu o seu “Lobster Man from Mars”, uma comédia em torno de um filme péssimo, tornado um inesperado sucesso de bilheteira.

Foi este último, aliás, que trouxe Wood às conversas da mesa 19, aqui há algum tempo. Começou tudo com a chegada do Paulo Sousa, visando uma dobrada tardia, já em tempo de digestivos. Enquanto ele comia e nós bebíamos, alguém reparou, e comentou em voz alta, que o Paulo parecia uma santola. Olhei então para ele, e não me repugnou admitir que ele parece de facto uma santola, da mesma forma que eu não pareço um esbelto galgo. Foi esse o início da carreira do Paulo, em direcção ao panteão de fama das santolas.

Foi por isso que me lembrei de Ed Wood. Ele foi o percursor de “O Homem Lagosta de Marte”, nós poderíamos talvez dirigir “O Homem Santola de Bostis Merdix 7”. E faríamos esse filme da única maneira que considero aceitável: mal, muito mal, mesmo. Não sei se conseguiríamos suplantar Wood nesse esforço, mas por certo que o tentaríamos. Porque, compreendem, eu estou seguro de que todas as falhas nos filmes de Edward Wood são intencionais, e de que ele sempre trabalhou, de forma brilhante, para produzir aquilo que realmente pretendia: os únicos filmes honestos da história de Hollywood.

É já quase banal chamar ao cinema A Grande Ilusão. O celulóide foi inventado para ser um repositório das mentiras cozinhadas pela indústria do espectáculo. O supra-sumo dessa arte consiste em convencer o espectador de que vê o que não está lá para ser visto, nem nunca esteve, ou virá a estar. Filmes como “Alien”, ou “Jurassic Park”, vivem de uma cornucópia de efeitos especiais, meros truques de circo pour epatter le burgeois. Mas o Homem Lagosta de Marte é real, intensamente real. Ali vemos, não a perfeição de um inexistente Alien, mas a sólida verdade de um esforçado actor, grotescamente mascarado com pedaços de borracha, a imitar um crustáceo. Ora digam-me cá, quantas vezes não há, em que nós próprios nos sentimos exactamente assim, como se passássemos pela vida mascarados de lagosta? Em contrapartida, quem é que, na vida real, viu já um Alien, verdadeiro e convincente?

Seria um desastre, se alguém tentasse produzir um making of de qualquer filme de Ed Wood. A essência desses documentários é explicar, a um público embasbacado, como se fez este ou aquele efeito. Isso é desnecessário nestes filmes, pois está lá tudo, o efeito e a forma como foi conseguido, tudo na mesma cena. É como se víssemos o filme dos bastidores, e não da plateia. Wood, ao contrário dos outros cineastas, acredita que a magia do cinema está apenas nisto, em permitir a sua própria desconstrução, a partir de dentro, do próprio filme, e não de uma crítica exterior ao mesmo.

E a nossa mesa 19, como se vê ela metida nestes assados? Poderei eu ligar, nas sólidas malhas de um raciocínio escorreito, esta cinéfila crónica? Pois bem, posso. Posso, mas não quero. Sinto-me um pouco professoral, hoje, por isso vou deixar este ponto em aberto, como trabalho para casa.

Nem sequer é difícil. Para além da razão óbvia, que é explicar por que razão começámos a vestir o Paulo de santola, há outras coisas. Basta que se pense em certas posturas profissionais mais honestas, deste ou daquele, que acabaram por resultar em maus filmes, figurativamente falando. Imagine-se que Óscares não teria valido uma postura diversa. Ou então esqueçam isso, e considerem apenas quantas vezes já pensaram, Isto está tão mal feito, que só pode ser de propósito!

Pois bem, quem é que disse que não é?

11.02.2006

39 – Afinal havia outras.

A Vânia, é com mágoa que o digo, descambou! Há já várias crónicas que tenho aqui exarado a minha preocupação em relação a essa miúda, tidas em conta as atitudes que tem revelado, pelo menos no que respeita à mesa 19. Pensei, contudo, que de birra ou amuo se tratasse, mas descobri agora que é mais sério o caso. A Vânia, passe o plebeísmo, pôs-nos com dono!

Serve esta crónica para falar de palitos, dos palitos que as testas da mesa 19 hoje ostentam, pares de bandarilhas que exibem despudoradamente o nome da que foi a nossa musa, e é agora uma novel Circe, mais não enxergando do que um leitão em cada um de nós, e nem por isso um leitão muito bem-educado. Os palitos, já dizia o saudoso MEC, são a versão portátil e civilizada dos clássicos cornos, mas têm um grave inconveniente: ao invés de darem, como seria de esperar, uma mera dor de palito, dão na mesma a velha dor de corno, como se a dimensão da nevralgia independesse do diâmetro das hastes que a fronte é obrigada a alojar.

Seja mais ou menos frondosa a ramada imposta, o facto é que a nossa amiga nos anda a empalitar. Pensávamos ter com ela uma relação especial, e volve-se esta no banal toma-lá-dá-cá da restauração quotidiana. Cuidávamos ser única a mesa 19, e afinal havia outras, muitas outras, até. Bastava ouvi-la no outro dia, em conversa íntima com esse aglomerado bastardo de tábuas que é a mesa 18! Todos os diálogos que de início mantivemos, todos ela ali repetiu, como quem enceta novo romance à vista do antigo. E nós, a vermos crescer os palitos.

É triste, mas é verdade: o homem depende da mulher, e a mesa 19, sendo uma coisa de homens, como ficou já demonstrado, depende também de uma mulher, da Vânia. Debalde a Marta acaricia as nossas cabeças, em vão a Lana se desdobra em solicitudes várias, a Vânia é o coração daquela mesa, e nós somos a mera carne e osso, que agora se inteiriça em extemporâneo rigor mortis, privada que se vê da sua circulação sanguínea. Bem podemos continuar a falar alto, e a entornar copos a despropósito, mas a coisa não tem mais graça. Quer dizer, até tem graça, tem mesmo muita, mas tem bastante menos, sem ela.

Não podemos em boa verdade censurá-la, pois é sabido que a Vânia cresceu. O problema é justamente esse, a Vânia cresceu, e nós não. A mesa 19, com o seu tremendo potencial, capaz de derrubar sistemas, mudar paradigmas, escrever novas filosofias, continua a retouçar juvenilmente nos verdes prados da sua infância, sob o soberano olhar de desprezo de uma Vânia agora adulta, de uma maioridade de curta data, cartão de cidadã com a tinta ainda fresca, que não tem portanto idade para entender como pode um bando de quarentões portar-se como a ala mais insubordinada de um infantário para crianças difíceis. Virá a percebê-lo um dia, mas será tarde: nessa altura, estaremos todos mais velhos, ou até mais mortos, pois ninguém permanece jovem para sempre. Não, nem mesmo quando se trata da segunda juventude, a da maturidade.

Mas, afinal de contas, o valor de uma pessoa, e bem assim de uma mesa cheia delas, depende do que outra pessoa pensa sobre elas, ou será antes uma característica intrínseca ao próprio, ou próprios, que nenhum julgamento externo pode alterar? A coisa depende: o famoso professor Taskus Kopus, no seu conhecido livro de auto-estima, chamado “Meti o dedo no rabo, e agora cheira mal”, afirma que o valor de um ser humano jamais pode ser medido por terceiros, a menos que o ser humano em causa seja feito de ouro, ou de outra matéria valiosa, ou então uma modelo da Playboy. Não sendo esse o nosso caso, afirma o professor Kopus que o nosso valor é apenas nosso, independentemente de a Vânia achar que somos umas bestas, e mesmo, independentemente de sermos de facto umas bestas. É complicado, mas é assim que funciona.

E o que muda, então? Pouca coisa, a Vânia lá continuará a andar, servindo dedicadamente todas as mesas, até mesmo a nossa. Os figurantes do costume pedirão dobrada, o controlo do ar condicionado, cheirinhos, e o livro de reclamações. Talvez até as crónicas da mesa 19 persistam, mas serão as crónicas de uma mesa imaginária, uma távola idealizada. A verdadeira mesa 19, desleixada por uns, abandonada por outros, encornada pela Vânia, já só vive em espírito. Requiescat in pace, e que a terra bem guarde o seu corpo, pois a alma há-de seguir em frente, e não duvido que virá a cumprir o seu destino.

10.31.2006

38 – Menina não entra.

Quando eu era mais novo, ao ponto, mesmo, de me considerarem jovem, costumávamos ler umas coisas chamadas “livros aos quadradinhos”, entidade que no Brasil responde pelo bem mais sucinto nome de “gibis”. Destes, uma parte era considerada infantil, e outra séria, distinguindo-se esta por constar de desenhos a preto e branco, com muitos tiros. A parte infantil vinha assinada por Walt Disney, com raras excepções, entre as quais as histórias da Lulu e do Bolinha, de autor que confesso não recordar, mas sem dúvida genial. Nessas histórias, os meninos, chefiados pelo Bolinha, tinham um clube exclusivamente masculino, sendo que o seu lema é o que dá o título a esta crónica, Menina não entra. O curioso é que eles não podiam passar sem as meninas, mas não queriam também passar com elas. Idiota, não é? Ou será que não?

Serve esta crónica para considerar a seguinte questão: não há mulheres na mesa 19. O facto, simples e brutal, não se presta a discussão, estando os seus fundamentos expostos para quem os quiser ver. Ao longo destas trinta e oito crónicas, sentei já na nossa mesa cerca de dez clientes habituais, fora uns quantos turistas, e todos eles enfermavam do sindroma da posse de pénis, coisa que por hábito distingue os elementos do sexo dito forte, o masculino. Nunca, desde que comecei a frequentar a mesa 19, foi esta distinguida com a gentil presença de uma feminil figura.

Rezam lendas mal confirmadas que sim, que no tempo em que os animais falavam, veio uma Helena das terras do norte, suavizar com o seu estro feminino a brutalidade grosseira do género macho, aquele que não evoluiu desde os ditosos dias das cavernas, quando o homem não tinha mais trabalho do que matar um pterodáctilo para o pequeno-almoço, e um par de brontossauros para encher a despensa. A mulher, nesses tempos arcaicos, servia para aplaudir o homem pelos seus feitos de músculo. Hoje, as coisas mudaram, a mulher não se presta já a esses papéis, e não serve mais para nada.

Isto será talvez um pouco drástico, querendo o adjectivo dizer que é politicamente incorrecto. A correcção política, muito em voga nos nossos tempos, manda-nos elevar aos píncaros da qualidade e competência todo o bicho careto, desde que se trate de: a) uma mulher; b) um preto; ab) uma mulher preta; c) um transsexual; cb) um transsexual preto; cba) um transsexual convertido numa mulher preta; d) a Woopy Goldberg. Quanto a um homem heterossexual que viva satisfeito com a sua sexualidade, trata-se evidentemente de um verme machista e explorador, apenas digno de ser calcado aos pés, com um trejeito de nojo.

E, ai de mim, é desses vermes que se compõe a mesa 19. Somos todos homens, daqueles que arrotam sem complexos o almoço ingerido (certo, isso sou mais eu, mas adiante). Calamo-nos todos em admiração quando entra um grupo de mulheres bonitas, e posso afiançar que nenhum de nós está a pensar no prazer que seria fazer tricot com elas. A Vânia não nos percebe, porque está ainda a meio do curso. Já estudou o lobo, falta-lhe estudar a alcateia. O facto é que nós somos perigosos, como cães que caçam em matilhas. Uma mulher, no meio de nós, correria o sério risco de ser deglutida!

Façamos um exercício de imaginação: digamos que existe uma mulher, apenas uma, entre os frequentadores da mesa 19. Somos seis, por hipótese, cinco homens e Ela. Nós pedimos um jarro de vinho, ela pede um ice tea de manga e raiz de jasmim, e estranha o nosso pedido, Tanto vinho? Ninguém tem alma de lhe explicar que não, que essa procissão ainda vai no adro. Um sorriso comprometido, e ficamos todos calados, com o ar inteligente de basbaques.

O jarro vazio comanda urgente pedido de reenchimento, e a comida ainda nem sequer chegou. A ninfa, entre dois gargarejos da beberagem pseudo-tropical, horroriza-se com “toda aquela vinhaça”. A Vânia faz causa comum com ela, como é próprio do sexo enfraquecedor, e nós começamos a criar uma certa vergonha de sermos uns beberrões abomináveis. Ainda não começámos a comer, e parece que já bebemos demais!

Após um almoço sensaborão, de tão depurado de qualquer termo menos consentâneo com a delicada sensibilidade auricular de uma virgem grega, por mais que os factos conhecidos tendam a colocar a nossa amiga na categoria das cortesãs romanas em fins de império, chega a hora dos digestivos. E aí, meus amigos, o melhor é pedirmos todos um chá, ou estaremos bem lixados, com um F muito grande. Whisky, brandy, vodka? Só se fosse um creme de mente, e mesmo assim… não, não dá!

A mesa 19 é uma daquelas coisas de homens, e ponto final. É uma guerra nossa, e as mulheres podem sempre torcer por nós, para que a ganhemos. No fim, o benefício será mútuo, pois o que nós ganharmos será ganho em nome delas. Que diabo, é para isso que os homens servem, ou não é?

10.30.2006

37 – A mesa 19, segundo Einstein.

É facto bem sabido, já desde os alvores do século finado, que tudo neste mundo é relativo. Afirmava alguém que não, que isso de ser tudo relativo não é um dado absoluto, pois essas coisas são muito relativas. A contestação vem, paradoxalmente, comprovar a tese original, e fica-nos a certeza de que o velho Einstein descobriu realmente alguma coisa importante. Que coisa poderá ser essa, eis o que desconheço em absoluto, sendo, como sou, um completo ignorante em questões de física. Isso não impede, no entanto, que o tente explicar aqui. Vamos então a isso.

O que vem a ser, nesse caso, a teoria da relatividade? Bem, trata-se claramente de uma teoria, e aquilo sobre que teoriza é, evidentemente, a relatividade. Consiste esta última em e=mc2, fórmula de miraculosa aplicação a todas as realidades da vida, incluindo a arte de bem apertar o botão das calças. No nosso caso concreto, tem-se que E é a ementa, M a mesa, logo igual a 19, e C2 o quadrado do número de convivas. Conclui-se, portanto, que deveria haver muitos mais pratos disponíveis, em cada almoço, pelo que andamos aqui a perder qualquer coisa. Não é esta a única equação envolvida, de modo nenhum, mas chega para nos dar uma ideia do assunto.

O ponto que aqui nos interessa é o seguinte: a teoria da relatividade dá origem a paradoxos, relacionados com a contracção do espaço e do tempo, aspecto em que é muito semelhante à mesa 19. Como justificar, por exemplo, que a primeira hora passada no restaurante se dilate, ao ponto de nos permitir almoçar e tomar cafés, enquanto o tempo seguinte se contrai, passando à desfilada uma quantidade de minutos gastos em nada? De que forma compreender a complexa geometria espacial de uma mesa que, com quatro lugares, acomoda todo o grupo, enquanto noutras vezes se apresenta com seis, e não bastam? São paradoxos que nem o velho Alberto saberia explicar!

Se a questão do tempo poderia ser eventualmente atribuída às libações alcoólicas do almoço, hipótese que veementemente nego, já a anomalia espacial resulta muito mais difícil de explicar, já que se manifesta logo no início dos trabalhos, antes que qualquer bebida seja consumida. Alguns autores defendem que, para além da quantidade de néctares espirituosos, há a considerar ainda o peso total de marisco presente à mesa. Ora bem, nós costumamos de facto almoçar com uma santola de oitenta quilos, o que é muito marisco, visto sob qualquer ângulo. Será essa a causa dos paradoxos?

Bem que eu sempre disse, esta mania que o Paulo arranjou, de se fazer passar por um crustáceo, ainda havia de dar mau resultado. Mais de uma vez o imaginei detido por atentado à moral e bons costumes, escoltado por dois agentes rudes, que se entreteriam com trocadilhos boçais e soezes, tipo, Pinças que és muito esperto? Baixa mas é as antenas, senão amolgo-te a carapaça. O que jamais me passou pela cabeça, no entanto, foi que a sua pequena brincadeira transgénica fosse capaz de interferir no próprio tecido do espaço-tempo.

Não restam contudo dúvidas, as tenazes da santola rasgaram mesmo esse fino tecido, e tudo se tornou possível. A refeição do meio-dia à uma pode acabar às três da tarde, ou a meio da manhã, numa mesa cujo tamanho vai variando ao sabor de uma incógnita ferozmente irracional. Eis-nos caídos em plena “Alice no país das maravilhas”. O jarro de vinho é o espelho, e a Vânia é o coelho branco. A Marta é a rainha de copas, e o Rui Constâncio, com umas tranças em vez da barba, é a Alice. Quanto a mim, reclamo o direito de ser o chapeleiro louco.

Resta então saber, face a isto, se Lewis Carrol já sabia que e=mc2. É bem provável que sim, e, nesse caso, Einstein limitou-se a caricaturar toda esta situação, com a sua teoria da relatividade. A chave para a leitura é agora evidente, a Vânia seria a Alice, e o Rui seria a mãe do coelho branco. Eu seria o irmão mau do chapeleiro louco, personagem que constitui um desafio, por não existir, e o Paulo Sousa apareceria figurativamente, como uma chávena de chá. Penso que isto resolve o mistério, no caso de não haver dobrada. Se houver, teremos de recorrer à mecânica quântica, e todos sabemos o que o velho Alberto pensava acerca disso.

Antes isso, no entanto, que ter de achar a derivada da mesa 19. A nossa mesa não se deriva, porque é primitiva. E pronto.

10.27.2006

36 – E, finalmente, a sobremesa.

Hoje tivemos um convidado na mesa 19. O caso é raro, e de feliz nota, pois a nossa mesa tem alguma tendência para se fechar sobre si própria, e faz-lhe bem sair mais, conviver um pouco. Veio este novo comensal pela mão do Rui Cardoso, e responde pelo nome de Jerónimo, com J, para não se confundir com aquele Gerónimo que era chefe de índios, e tinha o estranho hábito de gritar o seu próprio nome, de cada vez que caía do cavalo.

Nada há de menos bom a dizer sobre este Jerónimo, nem seria de esperar que houvesse, vindo ele com quem veio. É sabido que os amigos do Rui são amigos da mesa 19, e tão adequados a ela como ele próprio. O almoço transcorreu entre conversa amena e bem disposta, houve risos sapientes, e também juízos finos e sérios, como convém a gente ilustrada. Chegou enfim a hora em que a Vânia inquire sobre as sobremesas, e foi aí que o Jerónimo cometeu o seu erro.

Não se pode realmente censurar o rapaz pelo lapso havido, pois este teria sido normalíssimo noutro lado qualquer. Não, acontece apenas que ele não conhecia a Vânia como nós a conhecemos. Só assim se explica que lhe tenha pedido para o informar sobre as sobremesas disponíveis. Pior, num extremo de imprudência, pediu-lhe para detalhar todas as sobremesas, todas elas, compreendem? Tivesse antes consultado um de nós, e já saberia que aquilo não é pedido que se faça, não naquela casa, pelo menos.

A Vânia exultou, como é evidente. Eu não sei se já o disse aqui, mas o maior prazer daquela jovem é recitar de memória a lista das sobremesas, lista que se pareceria bastante com o inventário das existências de um grande armazém, caso fosse um pouco mais curta. Enchendo o peito de felicidade, ela lançou de pronto a sua ladainha:

Ora bem, temos mousse de chocolate, mousse de manga, mousse de limão, mousse de tremoço, gel mousse para cabelos secos e molhados, doce de natas, doce da casa, doces de três outras casas, uma das quais em estilo colonial, muito bonita, argentino, marroquino, tuaregue, bósnio, outro argentino, primo do primeiro, mas que mora nos arredores de Buenos Aires, baba de camelo, ranho de camelo, camelo ao natural e cristalizado, bolo de bolacha…

Por todo o restaurante, a vida continuava. Numa mesa afastada, diziam-se disparates sobre o campeonato nacional de futebol. Na mesa 19, cigarros eram fumados, apagados, e substituídos por outros. Dois convivas iniciaram uma partida de xadrez. E a Vânia prosseguia, infatigável:

…tarte de amêndoa, bolo de noz, bolo de vós, bolo deles, bolo de chocolate, nas variantes com e sem, sendo este último a versão de dieta, com pequenos caracóis em vez do chocolate, torta de gila, direita de gala, torcida de gola, jesuítas, beneditinos, franciscanos, testemunhas de Jeová, pudim de coco…

A torre branca deu um salto felino na direcção do bispo preto, espécie de Desmond Tutu que ali estava especado sem fazer nada. O bispo, miseravelmente surpreendido, foi juntar-se aos montes de pedras que juncavam já os dois lados do tabuleiro. Os olhos em bico do Jerónimo começavam a trair uma inegável ancestralidade oriental. Sem se apiedar, a Vânia continuava:

…pudim flan, pudim de ovos, pudim de leite, pudim de ovos com leite, pudim de ovos com bacon, pudim de dobrada, encharcada, ensopada, alagada, bola de Berlim, cubo de Estocolmo, prisma de Sevilha, cilindro de Istambul, bolo inglês, francês, italiano, naturalizado húngaro, emigrante ilegal na Alemanha, travesseiros, almofadas, lençóis e cobertores, e pão-de-ló, pão de lá e pão daqui.

O bom Jerónimo, olhos já cerrados de tão chineses, ousou a medo respirar. Teria acabado a enumeração? No tabuleiro do xadrez, o rei branco, que tinha ficado sozinho no fim do jogo, parou de roer os quadrados pretos, e prestou atenção. Mas não, eram só os doces que se tinham acabado, não o fôlego de Vânia.

Quanto a fruta, temos abacaxi, melão, laranja, limão, tomate, que também é um fruto, maçã, uva branca e preta, em cachos ou jarros, banana, para quem gosta dessas coisas, kunami, maracaté, farfalle, manga, gola, bolso de camisa, mamão, só para maiores de 18 anos, pêra abacate, pêra rocha, pêra calhau, pêra e bigode, e pêssegos em calda. Ufa…

Acabara a lista! O Jerónimo, timidamente, pediu uma mousse de chocolate, mas parece que não havia, e a Vânia garantiu que nunca falara em tal coisa. Como não, fez o indignado cliente, foi logo o primeiro artigo da lista! Pois aí tem, triunfou a Vânia, acabou-se entretanto. A gerência pede desculpa pelo facto. Peça então o que quiser, desde que não tenha nada a ver com mousse de chocolate.

Face à visível hesitação do comensal, a Vânia sugeriu um argentino. Pode ser, balbuciou Jerónimo, mas o que vem a ser isso? Vai gostar, garanto-lhe, é muito bom. Trata-se de uma taça com um pouco de leite-creme, coberto com mousse de chocolate.

10.25.2006

35 – Os pequenos portugueses.

Foi num amplo salão acastelado, varrido pelo ar frio do Inverno, que penetrava traiçoeiramente pelas frinchas das paredes de pedra mal nivelada, que D. Afonso Henriques intimou a mãe a ir às boas, ou então ele fundava um país, e aí é que estava tudo lixado. Outros reis marcaram a nossa história, do alto dos seus tronos luxuosamente estofados. Estadistas vieram depois, deliberando gestas prodigiosas em salões apalaçados. Vingaram os descobridores sobre o tabuado dos seus navios, e noutra nau partiu esse Sebastião, que depois se esqueceu de voltar. A santa Sé, dos seus paços governava a cristandade, e a fé triunfou em magníficos mosteiros. Só de uma coisa não reza a história pátria, é de grandes cometimentos ocorridos em mesas repletas de comida, a menos que de feitos de glutonice se tratasse, mas desses não reza nunca a história.

Vem esta crónica a propósito de uma votação que presentemente decorre, intitulada “Os Grandes Portugueses”, e que tem por fim eleger o maior português de todos os tempos. Matéria pacífica, esta, que em nada despertaria o nosso comentário, se não fora o facto, bem patenteado no parágrafo anterior, de ser a mesa 19 inelegível para tal galardão. Dirão alguns que não, evocando grandes nomes da literatura que se realizaram nesse mesmo palco, gente como Pessoa, Mário de Sá Carneiro, e até Eça de Queirós. Não deixa de ser verdade, mas Pessoa só por derrota se sentava à mesa, e nunca Eça fez tal coisa, quando liderava a geração de 70. Só uma década mais tarde se juntou restaurativamente aos Vencidos da Vida, ao lado de outros nomes derrotados, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins, gente que reconhecera já a incapacidade da sua famosa geração para mudar o país. Podem ter sido grandes portugueses, não o foram, decerto, em torno da mesa. Quanto ao Mário, e os seus absintos, estamos conversados.

Também na mesa 19 me custa vislumbrar um vencedor para tal concurso, isto sem desprimor para qualquer dos convivas. A verdade é que se torna difícil equiparar um dito humorístico, mesmo epigramático, com o lapidar “Ou sais pela porta, ou pela janela”, que celebrizou os insurrectos de 1640, ou as opiniões avulsas sobre o que está mal no actual sistema, com o corte a direito que foi a expulsão dos Jesuítas. Mesmo a heróica actuação da Vânia y suas muchachas, que contra toda a esperança vão derramando comida sobre a mesa 19, empalidece no confronto com essa genial padeira, que em Aljubarrota venceu lançando pão sobre o inimigo. Haveremos, então, de concluir que de nada vale o nosso grupo, e que estão os pátrios destinos bem entregues a mãos alheias? Julgo que não.

Um projecto em grande escala, como, por exemplo, um país, parece-se bastante com um míssil teleguiado. Carece de impulso inicial para se lançar em voo, bem como de impulsos fortuitos, para corrigir a sua trajectória. Na maior parte do tempo, no entanto, o que conta é o motor que, discreto e eficaz, vai impulsionando o míssil na direcção que lhe foi estabelecida. Assim foi Portugal fundado e moldado por grandes portugueses, mas jamais chegaria a existir se não fossem os pequenos portugueses, todos eles.

Todos? Isto perguntava César, nas aventuras dos gauleses, e também aqui temos de responder, Não. É aqui que umas tertúlias se distinguem de outras, é aqui que a mesa 19 marca a sua diferença em relação às restantes mesas. É que a nossa tertúlia, a mesa 19, calha não ser constituída por uma cambada de patetas. E, perguntarão, basta isso? Pois basta! Hoje em dia, é quanto basta.

Seria interessante organizar a votação dos melhores pequenos portugueses de todos os tempos. O resultado, receio bem, excederia largas centenas de milhões, englobando medievais homens de mão, camponeses de todos os tempos, bem como cidadãos mais modernos. Excluídos seriam aqueles nobres do século XII que em má hora se bandearam com os mouros, os senhores feudais que não contribuíram para o crescimento do reino, os falso republicanos que não queriam derrubar a monarquia, os pretensos monárquicos que vivem à custa da república, todos os que votaram no Salgado Zenha para presidente, e os fãs do Manuel Luís Goucha.

Sobrava ainda bastante gente, pessoas com espírito e vontade própria, pessoas com ideias e objectivos, pessoas, digamos, como as que se sentam na mesa 19. É para essas pessoas, é sobretudo para essa histórica mesa, que eu reclamo o galardão de melhores pequenos portugueses. E deixem lá os grandes, que mais não fizeram, afinal, do que cumprir a sua inevitabilidade histórica. A história, de resto, já os recompensou largamente. Agora é a nossa vez.

10.17.2006

34 – O fantasma da mesa 19.

Conta-nos Almeida Garrett, nessa lindíssima obra chamada “Viagens na minha terra”, sendo aquele minha a sua, isto é, sua dele, e bem assim nossa terra, que de uma ida a Santarém se trata, mas dá-nos ele, dizíamos, logo no primeiro capítulo, esta estupenda máxima literária: há livros que não deviam ter título, e títulos que não deviam ter livro. Cita, como exemplo do segundo caso, o excelente “Poeta em anos de prosa”, título sublime, ao ponto de ser impossível produzir um livro que lhe faça justiça. O acto de escrever um livro, com efeito, implica que se tem algo para dizer, de preferência algo novo, e não há, pura e simplesmente, nada que se possa acrescentar a “Poeta em anos de prosa”, título que disse já tudo o que havia a dizer.

Passando agora a circunstância mais chã e comezinha, temos a considerar o título da presente crónica. Parafraseando certo humorista da nossa praça, o título é um bom título, e não havia necessidade de estar agora a hesitar quanto à crónica que se há-de escrever por baixo dele. Mas a caneta vacila, estaca numa desavergonhada indecisão, e não há quem a convença a escolher uma vereda, e meter pés ao caminho. Para cúmulo do impasse, arma-se ainda a descarada em carapau, daqueles de corrida, e tenta devolver o problema ao pobre escriba, sugerindo que talvez seja melhor título, “O espírito da mesa 19”. E esta, hein? Com quem havia eu de ter casado a minha prima…

Espírito, ou fantasma? Parece isto uma questão idêntica à das chamadas grátis ou à borla, e contudo não o é. As esferas de significados das duas expressões são distintas, conquanto se interpenetrem (como diria o Baptista Bastos, isto de se interpenetrarem faz-me lembrar uma outra história, mas não há tempo para a contar aqui). Por outro lado, diz o sábio povo brasileiro, a quem costumávamos chamar os nossos irmãos transatlânticos, mas já não chamamos, porque agora estão todos deste lado do Atlântico, e além disso é melhor que paremos de os chamar, ou ainda vêm mais para cá, mas dizem eles, repito, que “desgraça pouca é bobagem”. Só para lhes dar razão, deixem-me propor um terceiro título, “A alma da mesa 19”.

Alma, espírito, fantasma… todas estas palavras têm um significado comum, respeitando à porção imaterial de um ser feito de matéria. Têm todas, também, um segundo sentido, que é próprio de cada uma, e distinto das demais: alma é vigor interior, força que por isso se chama anímica; espírito é o ideal, o conjunto de noções e sentimentos comuns que norteiam um indivíduo ou um grupo; fantasma é uma ameaça, o calafrio que o crepúsculo nos traz quando as sombras dominam, o temor arrepiado do desconhecido, do perigo metafísico que impende sobre nós, o lado negro do além.

Estas considerações, necessariamente tão vagas como a natureza etérea do conceito que tentamos abranger, poderão ser melhor condensadas numa frase exemplificativa. Digamos, “Toda a alma da mesa 19 se insurgiu contra a falta de dobrada. O nosso espírito, verrinoso e cônscio dos seus direitos, meditou uma vingança digna da afronta. Talvez se fizéssemos pairar sobre o restaurante, qual sombra ominosa, o fantasma da deserção da mesa 19? Mas, não, quem é que nos acreditaria?”. Julgo que este exemplo ilustra bem o nosso ponto de vista.

Mas há ainda o outro significado, aquele que agrega os três significantes numa única interpretação, o lado espiritual de uma entidade material. O ente que assim se projecta não é por força um ser humano, nem sequer um ser vivo, isto no sentido convencional e biológico da palavra. De modo algum, pode muito bem ser uma instituição, como uma escola, uma igreja, ou uma mera tertúlia que se agrupa, digamos, em volta de uma mesa, como a 19. Nesse sentido, o fantasma da mesa 19 é uno mas também múltiplo, sendo como é o conjunto de todos os “nós” que aí se sentam, altas horas da madrugada, quando nós não estamos lá sentados.

Isto postulado, acho-me agora em sério risco de que me acusem de levar demasiadamente a sério a mesa 19. Ora, isto não é verdade, ou, se o é, não é pelo menos assim. Eu levo a sério, muito a sério, mesmo, toda e qualquer agremiação de pessoas que cultive o hábito de se reunir em torno de gostos e valores comuns, e que privilegie o costume de pensar por si própria. Creio firmemente que tais associações, e apenas elas, poderão constituir uma barreira efectiva contra a lógica corporativista que ameaça destruir a humanidade, tal como hoje a conhecemos.

Um almoço mais tardio, com regresso jovial e impenitente. Uma censura recebida com um sorriso, um paradigma de empresa deitado ao desprezo. Os poderes estabelecidos reprimem um arrepio, vagamente enregelados pela sombra que inesperadamente macula o sol doirado da nova ordem. Mas não, senhores, não é nada de grave. Grave, para vós, é somente o que é material e tangível, e de nada disso se trata. Não é ainda a revolta armada, é apenas o fantasma da mesa 19.

10.16.2006

33 – Dies Irae.

Tremei, mortais, pois que impende sobre nós a consumação dos tempos. Eu, que aprendi no livro do apóstolo João os sinais da besta imunda, do anunciado anticristo, conheço agora que a sua hora é chegada. Escutai, como eu escutei, as sete trombetas, vede, como eu vi, o romper dos sete selos, admirai, como eu admirei, o celestial galope dos quatro terríveis cavaleiros, esses quatro magníficos que vão remir a humanidade, destruindo-a. Temei o julgamento Daquele que está sentado, pois serão poucos os escolhidos, e muitos os condenados. Receai uma só coisa, mas fazei-o com toda a vossa alma: receai o sétimo dia!

Serve esta crónica para falar do apocalipse, e de como este está próximo. Desenganem-se os iludidos, pois é a esses que peço que abram os olhos, e vejam os sinais. Desde há muito que os quatro cavaleiros campeiam pelo mundo fora. A Peste vestiu roupagens mais modernas, e responde hoje pelos nomes de Sida, e de cancro, mas nem por isso é menor a sua pestilência. A Fome tem em avença metade do globo, e a Guerra por toda a parte decide os humanos destinos. Sobre os ricos despojos que estes três vão deixando, triunfa o sinistro cavalo pálido, cujo cavaleiro se chama Morte.

Resta então saber o seguinte, como se tem saído a mesa 19, neste turbulento final dos tempos? Como sempre, a nossa mesa está em sintonia com as grandes realidades, e também nela se tem visto o quebrar dos selos, também dela se têm escutado as ominosas trombetas. Prenunciou a primeira neve e gelo, e a atitude da Vânia para connosco arrefeceu. Com a segunda, tingiu-se de sangue a terça parte das águas dos rios e dos poços, e a Vânia pintou o cabelo com um tom mais escuro. Note-se que o cabelo da Vânia é, precisamente, um terço dos cabelos femininos que aí nos servem.

Há ainda as duas bestas do apocalipse. A primeira, vinda da terra, semelha um enorme urso, enquanto a segunda provirá do mar. Ora bem, já há algum tempo que o Zé Eduardo anda embezerrado como um urso, se é que os ursos podem parecer bezerros, e não é ilegítima a metáfora. Mais recentemente, o Rui Constâncio deu em passar toda a refeição calado, lembrando, pelo porte, postura e inacção, uma versão ampliada de um cavalo-marinho, embora a barba estrague um pouco o efeito. O hábito que o Paulo Sousa adquiriu recentemente, de se vestir de santola, não se enquadra bem nesta teoria, o que conduz à suspeita de que se trate apenas de uma manobra dele, para despistar.

Por falar nisso, o nosso Paulo tem um segredo. Gostava de o contar aqui, mas não posso, porque é segredo. Isto não significa, como se poderia pensar, que eu me comprometi a manter a coisa confidencial, mas sim que não posso mesmo contá-lo, porque também é segredo para mim. Ele não mo conta, porque diz que não sou de confiança. De qualquer modo, a coisa é intrigante: quando um indivíduo é um reconhecido pederasta, com toda a fibra moral de uma feijoada, e uma marcada apetência por pornografia alternativa, que outro segredo poderá ainda ter, que considere embaraçoso?

Estou apenas a brincar, como é evidente. O nosso amigo Paulo não é nenhuma dessas coisas. É mesmo, estou disposto a jurá-lo, uma das santolas mais porreiras que conheço, mas está-me a irritar não saber o seu segredo. O assunto veio à baila numa altura em que a mesa discutia episódios diversos, todos envolvendo o acto de cagar fora do penico. Tudo leva portanto a crer que o segredo do Paulo se enquadre neste esquema de merda, fazendo assim jus à sua proveniência de Bostis Merdix 7. Ou isso, ou então será outra merda qualquer.

E deste modo vamos indo, sempre receosos dos calamitosos portentos que nos aguardam. A Vânia está cada vez mais ríspida, e ameaça-nos a torto e a direito. É evidente que é ela o Sentado, que virá separar os justos dos culpados, lançando estes últimos nas eternas labaredas infernais. Bem se vê que já nos julgou, e estamos todos condenados a descer às catacumbas.

Está visto, vamos passar a eternidade na cave do restaurante, com o ar condicionado desligado. Não importa, mais tarde haverá luar, e talvez um penico para o Paulo, também.

10.13.2006

32 – Duas doses de jarros à portuguesa.

A paz quebrou-se. Singelas palavras, estas, que nem por um momento deixam entrever a brutalidade do facto que descrevem. A mesa 19 pegou em armas e ergue agora barricadas, por trás das quais se azafama a escorvar os fuzis, fazer provisão de chumbo e polvorinho, e aguçar o fio aos punhais das baionetas. Prepara-se uma guerra civil como nunca se viu igual, pelo menos em terras lusas, a Tomada da Bastilha recontada em língua portuguesa. Aux armes, citoyens.

Serve esta crónica para dizer os veros sucessos do escândalo que esta semana viu a luz do dia, verdadeiro watergate instalado à mesa 19, sendo que as revelações deste não provêm de nenhum garganta funda, mas sim, paradoxalmente, de um garganta estreita. Mais precisamente, de um jarro de garganta estreita. Eu explico…

Terminada que estava a refeição, bem como os seus legítimos complementos, entretínhamo-nos todos nas costumeiras actividades finais, tais como dividir a conta, manipular trocos diversos, atirar bolinhas de papel às empregadas de mesa, e procurar algum disparate novo, que se pudesse executar com as alfaias ainda disponíveis. Foi nesse espírito de curiosidade científica que o Carlos Santos, após tentar várias combinações possíveis, acabou por enfiar um copo de vinho dentro de um jarro vazio.

Movido por um natural impulso de solidariedade, o Rui Cardoso tomou de imediato o seu próprio copo, e tentou enfiá-lo no jarro vazio que tinha à sua frente. Tentou, mas sem resultado – é que o copo não entrava. Pasmo e estupefacção na mesa 19, onde a todos pareceu claro que alguma lei estava ali a ser violada, restando todavia saber se pertencia tal lei às da física, se às que protegem os direitos do consumidor. Para deslindar o imbróglio, foi a Vânia severamente convocada, com carácter de urgência.

Começou a nossa musa por confirmar os factos, atestando primeiro que um dos copos entrava sem dificuldade, o outro nem sequer com ela. Trocou depois os dois copos, manobra inteligente que lhe permitiu constatar o seguinte: o copo que entrava no primeiro jarro não passava no segundo, e o copo antes bloqueado por este jarro cabia perfeitamente no primeiro. A conclusão impunha-se, incontornável: apesar de ambos os jarros proclamarem, gravada no próprio vidro, a sua capacidade e predisposição para conterem cada um deles um litro, o facto é que os seus diâmetros eram dissemelhantes, logo, diversa a quantidade de vinho que transportavam. Estava ateado o barril de pólvora.

Pois então, nestes tempos de Europa e de normalização, de sal em pacotinhos e azeite em pequenos frascos, para que cidadão algum seja roubado da sua justa ração de condimentos; de doses servidas em travessas individuais, de forma a garantir a equitativa divisão das iguarias adquiridas; dos palitos embalados individualmente, tão individualmente que seria um escândalo caso se vissem dois no mesmo pacote; nestes tempos de rigor, em suma, andavam ali a vender-nos quantidades inexactas de vinho, como se de litros precisos, milimétricos, ou melhor, mililítricos, se tratasse? Ora digam-nos cá, o que havíamos nós de pensar disso?

O que realmente achámos disto, poderá o leitor facilmente adivinhar. É evidente, para quem nos conheça um pouco, que achámos muito bem, a tal ponto que teríamos todo o prazer, se solicitados, em patrocinar ao restaurante um conjunto de jarros desiguais, todos oscilando entre o quase litro e o litro e tal, como aqueles dois.

A verdade, se querem mesmo saber, é que ninguém naquela mesa simpatiza muito com esta Europa normativa e corporativa, protectora apenas do que lhe apetece proteger, seja ou não tal coisa relevante; que regulamenta o número de amêijoas em cada dose de carne à alentejana, e conta as gambas que se hão-de pôr sobre cada prato de arroz de polvo; que decide o tamanho que devem ter as maçãs, mas não se importa se sabem ou não a maçã; que me obriga a rasgar seis dos malfadados pacotinhos de sal para temperar decentemente a comida, e me garante que é tudo para o meu bem. Essa Europa é uma chatice, e é um perigo – no dia em que decidirem normalizar também o tamanho do cliente, lá vou eu ter de deixar de almoçar.

Os jarros não são todos iguais? Ora engole lá essa, Europa, que é assim que as coisas se fazem por cá. Os jarros são diferentes, porque também os clientes são desiguais, e é forçoso que a necessidades distintas correspondam meios diversos. Ao cliente sequioso dá a Europa o seu litro de vinho, e outro tanto ao cliente moderado. Que lhe importa, a ela, que falte a um o que ao outro sobra? Mas importa à Vânia, que terá o cuidado de servir um litro grande ao primeiro, e um litro menor ao segundo. Pagam os dois o mesmo, a troco de quantidades distintas? Não senhores, pagam o mesmo, a troco da mesma satisfação, o que é perfeitamente justo.

Mantenham-se então as barricadas, mas contra o verdadeiro inimigo. Quanto ao fenómeno dos jarros, é algo que terei sempre prazer em celebrar, numa copiosa libação. Com um jarro grande, se possível.